"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

"Lembra de ficar um pouco mais quando pensar em ir embora..."



- Isso tudo é tão singular que eu não sei explicar!
Ela chegou, um pouco desajeitada, sentando-se ao lado dele, debaixo daquela árvore costumeira. Ele estava descascando manga para comer. Assim que a viu, toda espalhafatosa, sentando-se e não dando explicação alguma, parou o que estava fazendo. Ela tinha um olhar intrigado, mas a luz por trás dele era bastante nítida. Era um olhar juvenil, de sensação nova, de sentimento sincero e que vinha de muito de dentro dela. Tão de dentro que podia-se dizer que era do âmago de seu ser.
Mas fato é que ela tinha chegado do nada e totalmente espalhafatosa e se sentou ao lado dele, continuando com o olhar intrigado, olhando para todas a direções.
Ela colocou a mão no queixo e ficou olhando para o nada. Ele, então, se viu no dever de quebrar o silêncio da cena.
- Meu amor, você gostaria de um pedaço de manga...? - disse, estendendo a manga.
- Você não ouviu o que eu acabei de dizer?! Eu estou indignada, você não prestou atenção, e sempre presta tanta atenção! - ela disse, indignada e se levantando do banco-cotoco de árvore onde ela estava sentada, andando de um lado pro outro, muitíssimo frenética.
Ele já percebera que as agitações internas dela estavam intensas, embora não bravias. Ele já observara que ela estava de um modo muito diferente daqueles que ele antes vira...
- Ué, você chega sem explicar nada, lançando uma frase toda enigmática e quer que eu adivinhe o que quer dizer a mim? Se você quer dizer... diga! Não faça esse mistério todo... - pegou um pedaço de manga e comeu, com um certo tom de deboche, inclusive.
Ela parou e prestou atenção no que ela estava fazendo. Realmente, estava agindo como alguém que não está muito normal. Eram as agitações internas dela, pulando de felicidade e curiosidade em saber o por quê de tudo.
- Sim, meu Amado, eu sei disso tudo... Mas é que é uma sensação de novidade intensa! Sabe? Eu o sinto... Eu o sinto!
- Aaaah, você está falando dele? Ah, tá... - ele se arrumou no banco-cotoco de árvore em que ele estava sentado - Agora que eu me localizei, por favor, diga: o que lhe intriga? Sou todo ouvidos, como bem sabe, gosto muito das matérias do teu ser...
Ela se sentou e resolveu contar o que lhe afligia.
- Bem... É uma sensação de presença constante, embora a ausência exista. Física, puramente física, a distância. É como se ele tivesse se alojado em meu coração, realmente. Nos meus olhos, na minha boca, no meu abraço... Ele se alojou e ocupa de forma tão suave... tão doce... Não sei dizer o por quê disso! E gostaria de entender... Ou seria melhor não entender porque o mistério adoça tudo isso ainda mais, e você sabe como eu amo doce... - ambos riram.
- Mas eu não entendi... qual é o incômodo? - ele a questionou, comendo um pedaço de manga.
- É uma situação muito singular! O sentimento é recíproco, e estou experimentando isso pela primeira vez de forma pura, entende...? Além disso, mesmo estando fisicamente distantes, eu o sinto próximo... Não sei explicar, sei sentir... É como se a cada instante eu esperasse ele entrar pela porta e sentar ao meu lado, e isso se concretizasse cada vez que visse seu rosto, mesmo que distante... Entende?
Ele refletiu por alguns segundos, o que pareceu a ela um século.
- Se você consegue entender, tudo bem. Eu, sinceramente, não entendi bem. - ele disse, rindo um pouco.
- Eu acho que é porque estou emocionalmente conectada a ele... É leve, é bonito... é um amor suave, que não pesa... Eu nunca vivi isso, essa leveza toda... Às vezes até penso que pode ser um sonho meu, sabe...? Me sinto feliz e mal por pensar isso. Feliz porque é um sonho ótimo e mal porque pensar nisso como um sonho seria ter o medo de que isso acabe... E não gosto de sentir esse medo. Talvez pela distância... mas o que são 6h de distância, não é mesmo? - ela pensava, olhando para todas as direções.
Ele se levantou e foi limpar suas mãos. Deixou a faca em cima das coisas dele e foi até ela, pedindo com as mãos que ela se levantasse. Assim que ela o fez, ele a abraçou e disse, ao seu ouvido:
- Meu amor... Não se preocupe com isso. Viva isso que você sente, seja o que for, o máximo que puder, com a leveza, a intensidade e a pureza que isso apresenta. O que você e ele sentem, só a ambos cabe saber, a ninguém mais. Você pode querer explicar, definir... Mas como definir o indefinível? Como definir algo divinamente belo que existe entre dois seres? E qual a necessidade dessa definição? Você sente, e sente que é bom... por que questionar? Por que querer criar conceitos, provar aos outros? 
- É singular e é clichê. É quente e é frio. É suave e intenso. Eu não consigo definir! - ela chorava compulsivamente ao dizer isso, nos ombros dele.
- Não tente definir! Qual a necessidade? Por que você precisa mostrar aos outros aquilo que sente por ele?
- Sempre tive tantas palavras para definir as coisas... Estou ficando sem quando se tratam dos assuntos dele... 
- Isso lhe dói?
Ela respirou fundo e sorriu:
- Em absoluto. Isso só mostra o quanto é do interior do meu ser, o quanto isso está na alma de verdade. O quanto tudo o que já aconteceu confirma que isso sim é verdadeiro e intenso. O quanto somos um e somos dois. O quanto somos o quadro perfeito das imperfeições dos paradoxos que fazem sentido!
Ele sorriu e percebeu que seu momento ali havia sido completo. Silenciosamente, ele deu-lhe um beijo no rosto, limpou as lágrimas dela e foi arrumando suas coisas.
- Onde você vai, meu Amado? Precisava mais de tua companhia...
- Não... você não precisa. Você tem a si mesma como companhia suficiente e necessária. E sabe tanto disso que está sentindo tudo isso aí por ele. Você está junta-separada dele. Vocês dois são, realmente, a união de paradoxos que fazem sentido. E isso sim é magnífico. Eu vou, meu amor, mas eu volto sempre que precisar falar das matérias do teu ser com alguém... 
Ela acenou a ele, partindo e, com ele, ia o sol. Ela se sentou e sentiu seu coração enorme... Repleto de si e dele.
~*~



Música:
"Nós", Anavitória.

"Ei você, que se alojou nos meus
Olhos e na minha boca, por que não tá aqui?
A cama tá reclamando, a casa te chamando
Vem logo me ver
Tô te esperando entrar, não precisa bater
Que eu esqueci de me trancar"

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