sábado, 19 de abril de 2014
Sicut es unda
A jovem se prepara para o início. Mais um de tantos outros inícios que ela já encontrara na vida. Porém, de alguma forma, esse início é diferente... Parece mais intenso, mais completo, mais... mágico.
Ela passara os últimos meses procurando se conhecer internamente, conectar-se ainda mais com a natureza, posto que vivia numa aldeia desde que nascera. Também procurou conhecer seus espíritos ancestrais através de meditações. Tentava conversar com o vento, assim como faziam seus ancestrais. Conversava com seu animal interior, uma bela águia que sempre a guiava em momentos de maior dificuldade.
Em muitos momentos, a jovem pensou em desistir, em jogar tudo para o alto e dizer "Não, eu não pertenço a esse lugar e eu não pretendo continuar aqui! Por que em pleno século XXI, eu sabendo que existem outros mundos, outros lugares, tenho que continuar aqui?"... Mas sempre que essas dúvidas lhe vinham, algo no vento a dizia que ela deveria continuar. Algo na terra que ela pisava dava mais energia a ela. Algo na água em que se banhava lhe dizia "Persista, minha criança. Persista, preciso de você". Algo no fogo que ela ascendia todos os dias para se esquentar dizia "Purifique-se desses pensamentos, minha criança. O fogo de sua alma é maior que os medos que te afligem."
A jovem, para ter certeza do que estava fazendo, sempre consultava sua iniciadora, uma mulher muito sábia de mais de quarenta anos, que herdara do pai o ofício da família. Esta sábia disse a ela:
- Menina, preste bem atenção. Você mesma sabe os sinais que os elementos te mostram. Você mesma consegue sentir e ver os sinais que a Grande Mãe lhe dá. E ainda pode ter dúvidas? Bem, se você ainda tem dúvidas, consulte sua águia interior e veja o que ela lhe diz. Se ainda depois houver dúvidas e questionamentos, ouça os elementos, ouça a Grande Mãe, mas ouça com seu coração, ele lhe dirá.
E então a sábia partiu para seus afazeres da tribo, deixando à jovem muito o que pensar. Então, a jovem meditou, buscando respostas. Ela sempre soube, no íntimo de seu ser, desde muito pequena, que este era seu lugar. De alguma forma, sempre voltava-se à terra, aos seus pares, às pessoas que precisavam de ajuda, de cura. Então ela soube que deveria continuar o seu caminho, com toda certeza.
É já noite alta. Como no costume, uma lua cheia brilha no céu. Está amarela, enorme, encantadoramente mágica.
Estão todos da tribo à sua volta, em volta da fogueira costumeira desses rituais. Todos vestidos de acordo: com as peles e/ou as penas de seus animais de poder. E ela vê todos eles. Vê todas as pessoas e, muito maiores que todos eles, seus animais interiores.
A jovem se aproxima com sua iniciadora a seguindo. Todos a cumprimentam, e cumprimentam a águia que nela está, pois eles veem a ambas.
Um dos mais velhos da tribo inicia a música. Todos tocam tambores em ritmos alegres e contagiantes. Todos dançam. A iniciadora diz à jovem:
- A onda te atinge e te leva aos níveis mais profundos, assim como você também é a onda. Você está começando sua vida agora. Tudo o que viveu até aqui foi um ensaio para a sua real vida. Antes, a onda só atingia. Agora você se torna a onda. Você faz parte agora da teia da vida que nos conecta como um todo. Você é parte essencial desta tribo, e como tal, você cura a si mesma para poder curar a todos os outros. Você é movimento. Você é a onda. Você transforma os níveis mais profundos de todos desta tribo. Que nada te abale e que você tenha a sabedoria para cuidar desta tribo.
A jovem sente vontade de chorar, sabe o significado de tudo aquilo. A vida dela jamais seria a mesma. Era o momento dela dizer sua prece para que todos pudessem se sentir tranquilos e continuar a comemoração do início de sua vida xamânica. Ela tinha medo de errar, mas a águia lhe dizia "Continue, menina! Você tem força. Você tem coragem. Não te deixarei cair jamais. Você voa tão alto quanto eu! Vamos! Diga! Não há nada que te impeça!"
Ela olhava a fogueira e sentia o fogo irradiante dela a completar com a coragem que lhe faltava. Ela se sente quente, tende ao movimento. Ela sente a terra sob seus pés. Ela lhe impele ao movimento, a dançar, equilibra a quentura provinda do fogo e a revigora. O vento que toca seus cabelos e seu corpo como um todo sussurra "Vá, criança... Este é o caminho que seus anteriores fizeram, esse é o caminho reservado a você! Não encare como uma maldição, pois não é! É uma dádiva! Viva essa dádiva!" A água que se encontra no cálice à frente dela, que possui as ervas necessárias à comemoração, se agita alegremente e ela encara isso como um sinal de felicidade do elemento. Ela ri.
Então, com muito amor dentro de si, irradiando para todos ao seu redor, ela profere sua prece, a prece querida de seu povo navajo:
"Com a beleza antes de mim, que eu ande
Com a beleza atrás de mim, que eu ande
Com a beleza acima de mim, que eu ande
Com a beleza abaixo de mim, que eu ande
Com a beleza ao redor de mim, que eu ande"
Então todos gritam, felizes, e abraçam a nova xamã da tribo. Assim, eles festejam a iniciação de um membro amado da tribo com dança, tambores, e o seguinte canto:
"Unda attingit
Te et abducit
Te in profunda
Sicut es unda"
E a jovem se sente, final e completamente, em casa.
~*~
Música:
"Unda" - Faun.
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