"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Será que quero saber?

- Hoje eu não me sinto bem, meu amado... Não me sinto eu mesma, sinto como se todas as verdades e as certezas tivessem se tornado incertas, incompletas, inconcebíveis, irremediavelmente... ilusórias!
- Não é possível que você tenha se perdido tanto assim de seus objetivos... Você é tão organizada! Ora, minha amada... pense um pouco mais... está mesmo assim tudo tão perdido?
Ela sentia que estava assim. Antes, havia a certeza de que aqueles dias e noites compartilhados eram enriquecedores, eram algo que faziam bem a ela. Pensava que a vida que estava levando era leve, levíssima como uma pluma... Mas o tempo tornou isso dúbio. Tudo aquilo que ela vivia, estava a deixando confusa neste dia. E mesmo ele, que sempre a entendia, não conseguia captar os sentimentos sutis que dela saíam desesperadamente para todo o universo ao seu redor.
- Meu amado... eu não sei! Não sei o que pensar! Antes, era como se tudo aquilo, todo aquele sentimento fosse uno, fosse puro, fosse inocente... Hoje, ao que posso ver, é via de mão única, e isso me incomoda um bocadinho... Antes, não me incomodava! Por que me incomoda tanto? Por quê?
- Já pensou esses "por quês"? Consegue imaginar alguma resposta? Eu sei que sim... Diga-me. - Ele olhava para ela, que estava sentada em cima de um toco de árvore.
Seus cabelos estavam soltos, o vento brincava neles. A cena era muito bonita para ele. E para ela era um conforto poder esconder um pouco da sua chuva lacrimal com seus cabelos, que achava tão lindos.
Ela sabia que sentia muito, sempre sentira, mas deixara de lado esses sentimentos para viver outros, e como ela sempre pensou, o que é verdadeiro nunca a abandona realmente. Por mais platônico e ideal que fosse, ela sempre soube que seus sentimentos eram reais, eram intensos, e soube em que dimensões ela idealizava ou não as coisas. Mas hoje a dúvida tomou conta do seu ser. A dúvida que permeia vários corações: será que é verdade? Será que segue via única ou dupla? 
- Ah, eu penso muito nisso... Penso sim! Sei bem que pode ser que voe pra longe, este belo pássaro livre que tenho companhia comigo... Sei bem! E isso não me entristece: porque quero livres todos os pássaros! É assim que amo! Porque já sufoquei e sei o quanto dói. Mas o que me incomoda... Eu não sei ao certo! Acho que é a incerteza do pássaro voltar ou não a mim, entende o que quero dizer, meu amado? Caso ele se vá... Será que sentirá minha falta? Será que sente algo?
Ela chorava oceanos. Sabia que poderia perder a qualquer instante aquilo que amava tanto, e de certa forma isso não a incomodava. O que a incomodava era esse sentir sem sentir, esse sentir sem demonstrar, sem pegar, cheirar, abraçar, viver, enfim... Ele entendera o que ela quis dizer, mas não sabia como explicar a ela que isso acontece porque não há nada além do que ela tem: companhia. E de tempo indeterminado.
- E se, meu amado, é isso mesmo que eu tenho, por que então não viver ao máximo enquanto o pássaro escolheu ficar ao meu lado? Às vezes penso em acabar com tudo, mandá-lo embora de uma vez... Mas me conheço. Eu o amo. O suficiente para não pedir nada em troca, mas não o suficiente para não desejá-lo... e nem para desejar que eu fosse algo mais que só uma companhia. Mas será que eu quero saber isso mesmo? Será que quero descobrir como realmente se sente?
Ele sabia o quanto isso era conflituoso para ela. Sabia que ela queria viver tudo que pudesse e quisesse, e que isso dependia de muitos fatores. Ela estava confusa - isso era fato. Mas se sentia bem até. Bem o suficiente para não enlouquecer e nem surtar.
- Meu amor... Não sei ao certo o que lhe dizer. Acho que ninguém conseguiria lhe definir o que fazer, como proceder... Sei que você sente tudo isso muito profundamente, e gostaria de expandir isso ao redor de si... E que atingisse a todos, e que todos pudessem sentir essa coisa boa que você sente... sei bem! Mas entenda que nem todos sentem como você, é preciso paciência, minha menina...
- Sei disso... E me sinto mal por saber disso e teimar em querer que fosse diferente... Tentarei ter mais paciência, meu amado... Obrigada, como sempre me esclarecendo as coisas...
Ele deu um longo abraço nela e caminhou para o sol poente. Ela ficou sentada no toco de árvore, observando-o partir e sentindo seus fios de cabelo brincarem em seu rosto. A vida deveria ser leve como seus cabelos.

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Música:
"Do I wanna know?", Arctic Monkeys.

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