"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

La maison de la mort et de la douleur

Ele resolveu perambular pelas mansões do amor.
Quando lá chegou, viu que ela era guardada por três chaves cujos nomes estavam ocultados, porém era fácil identificar. Acima das chaves havia um aviso:
"Essas são as chaves para abrir a mansão do amor. Você tem três opções, porém com todas elas aprenderá lições vitais para si. Escolha com prudência e com seu coração."
Ele respirou fundo e continuou lendo:
"As chaves são: ERUDIÇÃO, SABEDORIA e PRAZER. Escolha a que tocar sua alma e seu coração e não haverá arrependimento na jornada."
Ele sabia bem qual escolher. Escolheu a do meio, da sabedoria. Ele então resolveu abrir os portões da mansão. Havia um jardim enorme e lindo, cheio de macieiras nele. Havia também algumas colméias e muitas roseiras vermelhas. Na porta da mansão, havia um pomo de ouro dentro de uma concha aberta. Ele sabia bem onde estava.
Adentrou os portoes e as infindáveis portas sem medo. Passou por todos os testes que se lhe apresentaram, e aprendeu muitas lições dentro daquele lugar, mas nunca viu seu anfitrião ou sua anfitriã, ainda não sabia quem era.
Um dia, então, ele encontrou uma sala muito ampla na mansão, que parecia ser o coração da casa. Lá, havia novamente o símbolo da entrada pintado na porta: uma concha com um pomo de ouro dentro, como uma pérola.
Ele, com certo receio, empurrou as pesadas portas e viu no fim do salão um trono todo adornado de flores dos mais diversos tipos e nos mais diversos estados: em broto, recém abertas, plenas de si e mortas. E, sentada no trono, estava uma figura cujo semblante era belo como o amanhecer, seu corpo era bem feito como uma pintura. Seus cabelos reluziam por conta da luz que entrava o cômodo pelos vitrais. Seu semblante era sereno, porém ele sabia que não era uma mulher qualquer... Algum motivo existia para sua anfitriã se mostrar somente agora.
- Sei que terei de convencê-lo a me saudar, mas fui eu quem te chamei primeiro. Não precisas dizer palavra, sei o que se passa em teu coração. Passaste muito tempo na mansão, buscando aquilo que abristes. O amor sábio. Saiba que não é fácil mesmo encarar-me... Mas uma vez que me encarares, todas as outras vezes que testemunhares minha face e meu poder, poderás lidar de forma sábia e amorosa, como tanto o quisestes...
Ele estava ouvindo atento, os ouvidos do corpo e da alma ouvindo tudo com muita receptividade.
- Colocastes a si mesmo na minha jornada. Quebrastes imagens falsas de si e de mim. Rompestes ciclos que não haviam a necessidade de existir há muito tempo já. Provastes as delícias do amor apaixonado. Provarás ainda as delícias do amor velho, o amor jovem. Mas, para isso, é preciso morrer.
- Eu preciso morrer? Como? Em que sentido?
- Certas coisas que vão embora voltam para nos mostrar lições ainda maiores. Certas dores prenunciam aprendizados. Então tens duas opções: aprender ou rejeitar. Na primeira, encontrarás aquilo que buscas, a chave que usastes. Na segunda, não há outra opção que não deixar minha mansão, para então, quem sabe, outro dia retornares.
- Eu escolho aprender, estou aqui para isso.
- Então sabes que estás testemunhando a morte. Ela é assim. Rápida, dolorida, sem adornos. Ela existe. Ela é quem faz deixar ir para deixar transformar. Sem filosofias, sem máscaras. A morte é isso: um arrancar da flor pela raiz, ou às vezes pelo caule. Um despetalar nunca é tranquilo... A morte é dura, fria, gélida... Faz doer.
- Mas não é uma morte literal, isso seria somente se fosse literal, e nao é...
- Existem várias mortes, bem sabes. E essa é a morte de algo que precisas descobrir que está morrendo. Pense, reflita. O passado veio usar o presente para matar algo. Sinta, ouça. O que morreu? Há semelhança, há conexão, há "coincidência"... - ela sorriu para ele - percebes?
- Ainda não vejo claramente e isso para mim talvez não faça nenhum sentido...
- O 6 se tornando 7... A Torre que veio me visitar tempos atrás, anunciando a quebra, a morte de algo, a destruição de algo... Sinta, perceba...
- Mas não seria o arcano d'A Morte e não d'A Torre? Isso não faz sentido.
- A Morte lida com o aceitar. A Torre lida com a dor, a destruição. É A Torre que vem ensinar que há aprendizado nos escombros, há que se pegar aquilo que ainda resta de essência para então elevar nova Torre. Depois da morte, o que sobra? O que há nos teus escombros que vale a pena manter? Como amar sem punir a si e nem a quem se ama? Como lidar com a decepção causada pelo ser amado sem intoxicar o amor?
Ele se aquietou. Precisava pensar. Precisava ponderar se aquilo tudo fazia mesmo sentido.
- Podes até pensar que sentido não há, mas olhe no fundo de tua alma e verás que sou eu agindo. Não no físico. Nos mais sutis... E que mais afetam muitas vezes... A dor do teu coração, bem como da mansão que nele existe, é forte... Quase incomensurável... Mas como aprender com essa dor? A morte vem para aqueles que sabem lidar com ela. Não há escapatória, não há desculpa... Como identificá-la quando ela chega? Olhos atentos são o suficiente? Estás pronto para me saudar?
Ele olhou fixamente para aquela feição delicadamente severa. Não sabia bem o que responder. Mas seu coração ardia em dor. Ainda assim, ele resolveu saudá-la, já que escapatória não haveria...
- Eu vos saúdo, senhora da morte. Eu vos saúdo, amantíssima Epitumbidia. Que dancemos sobre os túmulos e sobre os escombros. Que as lições aprendidas em vossa mansão sirvam de regozijo futuro.
- Uma chave leva às outras. Escolhestes a correta, a mais segura... Que a morte possa te ensinar aqui em minha mansão. Abençoado és.
Ele então ficou lá, ajoelhado, prostrado. A porta se fechou, e lá ele se manteve para aprender tudo o que precisaria.

~*~

"Eu achei que já havia me machucado antes
Mas nunca ninguém me deixou tão ferido
Suas palavras cortam mais do que faca
Agora preciso de alguém para me trazer a vida
Sinto que estou afundando
Mas eu sei que conseguirei sair vivo
Se eu parar de te chamar de meu amor
E seguir em frente

Você me vê sangrar até que não possa mais respirar
Eu estou tremendo, caindo de joelhos
E agora que estou sem seus beijos
Vou precisar de pontos
Estou tropeçando em mim mesmo
Sofrendo, implorando por sua ajuda
E agora que estou sem seus beijos
Vou precisar de pontos

Assim como uma mariposa é atraída pelo fogo
Oh, você me atraiu, eu não podia sentir dor
Seu coração amargo e frio ao toque
Agora vou colher o que eu plantei
Estou sozinho com a minha raiva
Sinto que estou afundando
Mas eu sei que vou conseguir sair vivo
Se eu parar de chama-la de meu amor
E seguir em frente

[...]
Agulha e a linha
Tenho que tirar você da minha cabeça
Agulha e a linha
Vou acabar morto" - "Stitches", Shawn Mendes.

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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Temple of Thought

A tarde já se punha a findar. Os raios de sol, bastante acolhedores, iam se distanciando. O frio se aproximava, mas aterrador do que nunca. Ela sentia a brisa fria acariciando sua pele com o amor de uma avó, mas o frio entrava em sua pele com o ímpeto de uma agulha.
Ela estava sentada sobre uma pedra, debaixo da árvore costumeira. Olhava para cima, analisando o movimentar das folhas e ouvindo seu farfalhar. Tudo estava como tinha de estar, ela pensou, nada está fora do lugar... eu me sinto una... Então por que esse sentimento me invade?
Enquanto ela estava ponderando sobre esse sentimento, ela sentiu o calor de uma mão conhecida tocar seu ombro. Era ele, que se chegou e se sentou ao seu lado. Ela olhou para ele, sorriu, olhou longamente nos olhos dele, que sorriram ao vê-la. Ele estava claramente com saudade dela, e ela dele. Suas conversas eram sempre muito edificantes para ambos.
Ele se sentou, respirou fundo - como quem chega de uma longa caminhada -, envolveu seu braço nela e perguntou, com voz bastante doce:
- O que se passa por essa cabeça maravilhosamente concebida pelos deuses?
Eles riram. Ela respirou fundo:
- Ah, meu Amado... Não sei bem. Eu me sinto como a brisa: necessária, porém fria. Entende? Faço parte de um todo que também me é necessário, mas tenho a sensação de que meu formato teria que ser expandido... Renovado... Mudado... - ela então deu um salto pro lado - Queria ser tempestade! É isso!
Ele se assustou um pouco e riu:
- Você queria destruir o que estivesse no seu caminho? Então, de fato, você não se identifica com o todo! Onde já se viu querer destruir aquilo de que você faz parte! - ele riu mais.
- Meu Amado... Às vezes precisamos destruir certos muros já há muito construídos para que algo novo se crie... por isso amo tempestades e de fato gostaria de fazer parte delas! Na realidade... Elas representam a expansão que eu sinto que deveria existir em mim! Existe em mim um furacão contido, que, por estar contido, dói no centro de meu coração...
- Entendo... Você não está dando vazão a seus sentimentos, novamente? Sabe muito bem que isso lhe é prejudicial, meu amor... não deve fazer isso... - ele olhou para ela com certa repreensão.
Ele não estava entendo o que ela queria dizer e, no fundo, ela sabia que ninguém entenderia por completo, porque era um sentimento novo... Que talvez só ela entendesse...
- Não, meu Amado, estou dando vazão aos meus sentimentos, de formas variadas, para pessoas diferentes, mas todas ligadas ao meu coração... Esse sentimento é na verdade uma necessidade de infinito, de romper o invólucro da carne e expandir! Crescer! Por isso tenho vontade de não existir! Mas isso dói... Dói porque não sei como não existir...
Ele estava intrigado. Algo muito estranho estava ocorrendo dentro dela. Talvez nem ela entendesse bem o porquê.
- Meu amor, isso não é reflexo de alguma carência sua? Alguma necessidade de chamar atenção? Alguma saudade incontida...? - ele ponderava e olhava as reações dela.
Ela estava plácida. Já havia refletido muito sobre esses aspectos, naquele dia e em outros. Ela chegara a uma conclusão: não era necessidade de chamar atenção e nem carência, muito menos saudade incontida. Era um sentimento novo, que ela não sabia de onde vinha e nem porque existia. Simplesmente ali estava, ali se apresentava e ali queria ficar.
- É um sentimento parecido com aquele que temos quando dormimos... Sabe? Aquele momento em que há um vazio? Não se sonha, mas também não se está acordado... É uma não-existência existente... É estranho de se pensar, mas esse sentimento se assemelha a esse momento específico do sono... - ela dizia com certo entusiasmo; ele olhava perplexo, sem entender palavra - Será que seriam seduções de Morfeu para comigo?
Ela olhou bem nos olhos dele e sentiu o desespero dele em entender o que se passava dentro daquela menina-mulher... Ele não compreendia. Afinal, como compreender um sentimento de não-existência? Um desejo de não existir? E, quando quase compreendido, como entender isso como algo que é bom e ao mesmo tempo ruim?
- Meu amor... por que isso tem te deixado mal? Eu não compreendo... Eu não consigo... É ansiedade? Deve ser! Tem certeza que não é nada daquilo que eu disse?
- Isso me causa ansiedade, e até por isso tenho sentido certo desespero com as coisas e comigo mesma... Mas tenho vontade de expansão... De arrancar minha pele e libertar meus ossos! De transbordar para todos os seres as coisas maravilhosas que sinto, me dissolver em nada e em tudo ao mesmo tempo... Deixar as borboletas interiores voarem... voarem para longe, para onde quiserem!
Ela olhava para o céu poente. O sol já quase não se podia ser visto. Uma grande interrogação se podia ser vista no rosto dele. Ele, de fato, não entendia.
- As matérias do seu ser têm estado bastante confusas... O que está acontecendo?
- Acho que algo muito profundo, intenso e maravilhoso está para acontecer... Mas tudo depende do ponto de vista! Acho que será maravilhoso para todos... Eu sinto e sei disso! E sei também que todos os meus amados serão afetados, alguns mais que os outros... Tempos maravilhosos virão! Tudo depende do ponto de vista!
- O que quer dizer com isso, meu amor? Você está me assustando...
- Partindo do princípio que toda situação tem dois lados de análise... Tudo depende do ponto de vista! Não sei como essa coisa maravilhosa se dará.,.. Mas sei que acontecerá!
- Bom, seja qual resultado for, estarei aqui para que me conte. E espero ver esse brilho intenso nos seus olhos quando acontecer... - ele ia rumando ao sol poente para ir embora.
Ela correu atrás dele e o abraçou. Agradeceu por todo amor e carinho que ele manteve por ela nesses sete anos em que ele a acompanhou, aconselhou, ajudou e amou... E ele pôde sentir a gratidão vinda dela. Mas ele também sabia que logo algo acabaria...
- Quando algo novo se instaura, algo velho se vai... não é assim? - Ele perguntou, com certo pesar na voz, e lágrimas querendo verter de seus olhos.
- Sim - ela disse, agarrada às suas costas -, mas tudo que é verdadeiro fica. E você sempre será parte de mim, meu Amado... Mesmo eu não sabendo quem você é. Bem, não sei somente seu nome... Quem você é eu sei, sempre saberei... Assim como eu sempre serei parte tua... - ela foi à frente dele e olhou nos olhos dele - agora mais que nunca, um dia, eu serei parte tua. Eu sei.
Ele sorriu, a beijou e a abraçou. Então desapareceu no fim de pôr-do-sol que existia.
~*~
Música:
"Temple of thought", Poets of the Fall.

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quarta-feira, 8 de março de 2017

"Hate me, break me down..."


O sol já não estava mais presente. Os animais não faziam som algum. Tudo era silêncio: tempo de depuração dos fatos e sentimentos, ao que tudo indicava.
Ela estava sentada ali havia algum tempo, pensando, como o usual. Era o que ela mais vinha fazendo: pensar, ato esse que nunca fora um problema, ela sempre conseguira pensar em soluções prontamente. Por algum motivo, ela não estava conseguindo... Havia algum bloqueio, e ela o sentia muito claramente, até fisicamente.
Ele chegou perto dela e se sentou, na escuridão que ela estava. Ele tinha um castiçal com uma vela acena em mãos e demorou a reconhecê-la por conta da penumbra que se formava ao iluminar seu rosto.
- Meu amor... Há algo de diferente sobre você... O que está acontecendo?
Ela respirou fundo e penso bastante (novamente) se deveria ou não abrir seu coração e sua mente dessa forma.
- A mente é uma coisa incrível, não é mesmo, meu Amado? Num momento está tudo bem e basta que a mente se afete um pouquinho para que toda uma conjuntura mude!
- Ah, então você está deliberando sobre o poder da mente... - ele se sentou ao lado dela, um pouco mais animado - A que conclusão chegou?
Ela respirou fundo novamente, como numa tentativa de centramento, e disse:
- A nenhuma. Eu simplesmente não consigo mais chegar a uma síntese. Tudo se expande, e é como se estivesse tudo dentro da garrafa, que sou eu, pronto pra explodir. Uma tempestade contida, mesmo. E, sinceramente, meu Amado... Não sei se quero liberar essa tempestade. O caos que causaria talvez fosse muito maior do que o que a natureza repararia depois do estrago.
Lágrimas rolavam de seu rosto enquanto dizia tais constatações. Ele ficou preocupado.
- Mas, meu amor, você precisa liberar tudo isso... Você não pode conter tudo isso senão uma hora você vai quebrar e ...
- Aí é que está! Eu não posso quebrar! Eu não posso! Eu não me permito e as situações não me permitem! Eu sei ser caos, mas não posso ser! Sou, de fato, uma tempestade contida... e logo quando acho que posso liberar um tornado ou outro, algo vem para fechar a garrafa novamente... É o que sempre acontece! - Ela disse, um pouco inquieta e desesperada, ao cortar a fala dele.
Ele entendia bem o que ela estava querendo dizer. Quando se contém por muito tempo vários chuvas e pequenas ventanias, elas se acumulam de modo que muita coisa possa ser destruída caso as mesmas sejam liberadas. Mas fato é que ela precisava liberar essa tensão toda para que o elástico sendo puxado não arrebentasse, pois ele poderia acertá-la bem nos olhos.
Ele então a abraçou e pediu para que ela não deixasse de se expressar, mesmo que o outro não estivesse bem também.
- Meu Amado, até parece que você não me conhece... Eu sempre, em todos os casos, vou me segurar caso o outro esteja pior, em qualquer maneira que seja, pior que eu... Ou então, quando eu notar que eu não devo ser o foco das atenções. Eu sempre saio de cena. Talvez isso esteja me matando.
Eles então se despediram. Ele não queria ir, mas ela pediu. Ela precisava de mais tempo para depurar tudo aquilo que sentia e pensava. A brisa tocava suave a ambos quando ela pôde perceber a luz da vela desaparecendo de vez.

~*~
Música:
"Breakdown", Seether:
"Então acabe comigo se isso te faz se sentir bem
E me odeie agora se isso te mantém bem
Você pode acabar comigo se isso está em seu poder
Pois eu sou muito mais que os olhos podem ver"

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

"Lembra de ficar um pouco mais quando pensar em ir embora..."



- Isso tudo é tão singular que eu não sei explicar!
Ela chegou, um pouco desajeitada, sentando-se ao lado dele, debaixo daquela árvore costumeira. Ele estava descascando manga para comer. Assim que a viu, toda espalhafatosa, sentando-se e não dando explicação alguma, parou o que estava fazendo. Ela tinha um olhar intrigado, mas a luz por trás dele era bastante nítida. Era um olhar juvenil, de sensação nova, de sentimento sincero e que vinha de muito de dentro dela. Tão de dentro que podia-se dizer que era do âmago de seu ser.
Mas fato é que ela tinha chegado do nada e totalmente espalhafatosa e se sentou ao lado dele, continuando com o olhar intrigado, olhando para todas a direções.
Ela colocou a mão no queixo e ficou olhando para o nada. Ele, então, se viu no dever de quebrar o silêncio da cena.
- Meu amor, você gostaria de um pedaço de manga...? - disse, estendendo a manga.
- Você não ouviu o que eu acabei de dizer?! Eu estou indignada, você não prestou atenção, e sempre presta tanta atenção! - ela disse, indignada e se levantando do banco-cotoco de árvore onde ela estava sentada, andando de um lado pro outro, muitíssimo frenética.
Ele já percebera que as agitações internas dela estavam intensas, embora não bravias. Ele já observara que ela estava de um modo muito diferente daqueles que ele antes vira...
- Ué, você chega sem explicar nada, lançando uma frase toda enigmática e quer que eu adivinhe o que quer dizer a mim? Se você quer dizer... diga! Não faça esse mistério todo... - pegou um pedaço de manga e comeu, com um certo tom de deboche, inclusive.
Ela parou e prestou atenção no que ela estava fazendo. Realmente, estava agindo como alguém que não está muito normal. Eram as agitações internas dela, pulando de felicidade e curiosidade em saber o por quê de tudo.
- Sim, meu Amado, eu sei disso tudo... Mas é que é uma sensação de novidade intensa! Sabe? Eu o sinto... Eu o sinto!
- Aaaah, você está falando dele? Ah, tá... - ele se arrumou no banco-cotoco de árvore em que ele estava sentado - Agora que eu me localizei, por favor, diga: o que lhe intriga? Sou todo ouvidos, como bem sabe, gosto muito das matérias do teu ser...
Ela se sentou e resolveu contar o que lhe afligia.
- Bem... É uma sensação de presença constante, embora a ausência exista. Física, puramente física, a distância. É como se ele tivesse se alojado em meu coração, realmente. Nos meus olhos, na minha boca, no meu abraço... Ele se alojou e ocupa de forma tão suave... tão doce... Não sei dizer o por quê disso! E gostaria de entender... Ou seria melhor não entender porque o mistério adoça tudo isso ainda mais, e você sabe como eu amo doce... - ambos riram.
- Mas eu não entendi... qual é o incômodo? - ele a questionou, comendo um pedaço de manga.
- É uma situação muito singular! O sentimento é recíproco, e estou experimentando isso pela primeira vez de forma pura, entende...? Além disso, mesmo estando fisicamente distantes, eu o sinto próximo... Não sei explicar, sei sentir... É como se a cada instante eu esperasse ele entrar pela porta e sentar ao meu lado, e isso se concretizasse cada vez que visse seu rosto, mesmo que distante... Entende?
Ele refletiu por alguns segundos, o que pareceu a ela um século.
- Se você consegue entender, tudo bem. Eu, sinceramente, não entendi bem. - ele disse, rindo um pouco.
- Eu acho que é porque estou emocionalmente conectada a ele... É leve, é bonito... é um amor suave, que não pesa... Eu nunca vivi isso, essa leveza toda... Às vezes até penso que pode ser um sonho meu, sabe...? Me sinto feliz e mal por pensar isso. Feliz porque é um sonho ótimo e mal porque pensar nisso como um sonho seria ter o medo de que isso acabe... E não gosto de sentir esse medo. Talvez pela distância... mas o que são 6h de distância, não é mesmo? - ela pensava, olhando para todas as direções.
Ele se levantou e foi limpar suas mãos. Deixou a faca em cima das coisas dele e foi até ela, pedindo com as mãos que ela se levantasse. Assim que ela o fez, ele a abraçou e disse, ao seu ouvido:
- Meu amor... Não se preocupe com isso. Viva isso que você sente, seja o que for, o máximo que puder, com a leveza, a intensidade e a pureza que isso apresenta. O que você e ele sentem, só a ambos cabe saber, a ninguém mais. Você pode querer explicar, definir... Mas como definir o indefinível? Como definir algo divinamente belo que existe entre dois seres? E qual a necessidade dessa definição? Você sente, e sente que é bom... por que questionar? Por que querer criar conceitos, provar aos outros? 
- É singular e é clichê. É quente e é frio. É suave e intenso. Eu não consigo definir! - ela chorava compulsivamente ao dizer isso, nos ombros dele.
- Não tente definir! Qual a necessidade? Por que você precisa mostrar aos outros aquilo que sente por ele?
- Sempre tive tantas palavras para definir as coisas... Estou ficando sem quando se tratam dos assuntos dele... 
- Isso lhe dói?
Ela respirou fundo e sorriu:
- Em absoluto. Isso só mostra o quanto é do interior do meu ser, o quanto isso está na alma de verdade. O quanto tudo o que já aconteceu confirma que isso sim é verdadeiro e intenso. O quanto somos um e somos dois. O quanto somos o quadro perfeito das imperfeições dos paradoxos que fazem sentido!
Ele sorriu e percebeu que seu momento ali havia sido completo. Silenciosamente, ele deu-lhe um beijo no rosto, limpou as lágrimas dela e foi arrumando suas coisas.
- Onde você vai, meu Amado? Precisava mais de tua companhia...
- Não... você não precisa. Você tem a si mesma como companhia suficiente e necessária. E sabe tanto disso que está sentindo tudo isso aí por ele. Você está junta-separada dele. Vocês dois são, realmente, a união de paradoxos que fazem sentido. E isso sim é magnífico. Eu vou, meu amor, mas eu volto sempre que precisar falar das matérias do teu ser com alguém... 
Ela acenou a ele, partindo e, com ele, ia o sol. Ela se sentou e sentiu seu coração enorme... Repleto de si e dele.
~*~



Música:
"Nós", Anavitória.

"Ei você, que se alojou nos meus
Olhos e na minha boca, por que não tá aqui?
A cama tá reclamando, a casa te chamando
Vem logo me ver
Tô te esperando entrar, não precisa bater
Que eu esqueci de me trancar"

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Luz e Sombra



Ela observava tudo aquilo que acontecia em seu reino com calma, paciência e ternura. Não havia outra forma de proceder que não fosse assim. Ah, e é claro, com pulso firme, porque senão sua irmã poderia tomar conta e, segundo o que todos os súditos sabiam, não havia sido um reinado calmo...
Sua irmã havia comandado um reino de solidão, frieza e de muita dificuldade no reino. Ela sabia que não podia deixar que a irmã tomasse conta novamente, embora não pudesse expulsar a irmã de lá.
- Se me odeias tanto assim, peço-te que me expulses, que me bana de tua vida, para que eu possa seguir em frente sem grandes problemas... Já que de nada meu reino serviu para estes que chamas de súditos amados, nenhuma lição foi aprendida, não consegui construir nada de bom para este povo ingrato que te serve... Se de nada sirvo, que faço aqui? - disse a irmã um dia, ao sentir-se incomodada com a situação toda.
A rainha compadeceu-se de sua irmã, mas ambas sabiam que ela não poderia comandar por muito tempo, em algum momento, elas teriam que comandar juntas, porém naquele instante sua irmã era muito maléfica ao reino simplesmente pela sua essência, que ambas conheciam e temiam.
- Minha amada irmã, não é por descuido nem por falta de amor que não te permito governar ao meu lado. Sabes bem o que causastes ao povo quando comandastes... Ambas sabemos... E eu não deixo nada daquilo acontecer porque os súditos precisam de meu zelo.
A irmã olhou com mirada fulminante a irmã, bem fundo em seus olhos e disse:
- Sabes que te sou necessária, sabes bem disso. Tu, sozinha, matas os teus súditos porque só és tão boa porque sabes bem como ser má... Aprendeste comigo, assim como eu posso ser boa, pois vejo em ti aquilo que falta em mim... Não me menosprezes!
- Não te menosprezo, irmã querida... - ela a abraçou - Não, de modo algum... Quero que fiques a meu lado, como minha companheira, minha gêmea... Mas sabes bem o estrago que causastes...
A irmã soltou-se dela com raiva e afastou-se.
- Só causei este estrago pois não estava comigo quando mais precisei. Não tinha teu amor como meu guia. Tu me negastes, e quando percebeu que teus súditos não estavam mais dando conta de teu amado reino, voltastes contra mim tua ira de boa moça e me suprimistes... Até o que sou agora, mas eu sei bem que eu retumbo dentro de ti, eu retumbo dentro de teu peito, eu pulso para estar ao teu lado dentro de teu coração... E bem lá dentro de ti, sabes que é verdade...
Ambas olharam-se longamente. Elas eram da mesma essência - eram irmãs, ora essa! -, e sabiam bem onde lhes doía, e onde lhes era fácil viver. Elas sabiam em que pontos poderiam dar as mãos, mas nunca caminharam juntas por orgulho puro... Por pensarem que conseguiriam reinar sozinhas algo enorme e vasto como o reino delas. Algo até, e principalmente, por elas desconhecido...
A rainha de então abraçou longamente a irmã e sem soltá-la um segundo sequer, disse:
- Minha irmã, minha mãe, minha amiga, minha amante... Preciso de ti assim como tu precisas de mim, agora posso ver... Vem e fica perto de mim, tão perto que sejamos uma só... E que caminhemos uma ao lado da outra, de mãos dadas, num romance que ninguém poderá dizer um ai sequer sobre... posto que o que nos une é muito maior do que nossas diferenças e semelhanças... Aprendestes a ser ótima comigo, pois eu sei ser muito má. E eu aprendi a ser boa porque fostes muito má comigo. É uma via de mão dupla, vês? E somos uma... E somos uma...
E, dizendo isso, as rainhas fundiram-se uma na outra, e os súditos viram uma explosão de luz e sombras tomar conta do reino todo... E, por fim, viram somente uma figura ajoelhada ao chão, resplandecente em sua coloração de luz e sombras que dizia:
- Somos uma... E nós somos uma para governarmos não uma e depois outra, mas sim uma com a outra. Que nosso reino seja pleno.
Luz. Sombra. Irmãs que caminham juntas e muito unidas. E que caminham juntas, pois que, paradas, uma das duas ou ambas, não caminham.

~*~

"E se não arriscarmos essa chance
Então acabará
Observando os outros garotos
Que nós não somos capazes de 

De ter tanta certeza
Dos nossos caminhos
De sermos tão perdidos
Em nossas trilhas

Porque eu estou bem
Sim, eu estou bem
E eu estou muito bem
Sim, eu estou bem"

Música:
"Invicto", Cambriana.
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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A rainha



Ela estava sentada, serena, em seu trono. Observava seu reino de modo a manter tudo em ordem e fazer com que seus súditos fossem servidos de forma justa e correta.
Ela reinava sozinha. Muitos perguntavam a ela porque ela decidira herdar o trono de seu pai sem que houvesse um rei, visto que este seria opcional após a sua posse.
- Não conheci até hoje ser humano que fosse digno deste posto tão nobre. Tendo em vista que ele teria de governar a vós e estar sempre em comum acordo comigo e com ele mesmo. Eu não iria deixar minha coroa de lado para ceder aos caprichos de qualquer que fosse o rei, ou rainha, ao meu lado.
- Mas, senhora, tu, em algum momento, teria de ceder em algum ponto! Nada nessa vida pode ser segundo somente um ser humano quer! - gritou um dos súditos, preocupado com a possível postura ditatorial da rainha.
Ela explicou que, até o momento, não havia visto nenhum ser humano capaz de, ao mesmo tempo, serenar seu coração e fazer as fibras de sua alma queimarem e vibrarem tanto ao ponto de querer dividir o governo do reino com ela.
Os súditos entenderam. Alguns ficaram contrariados e quiseram até dar diretrizes à rainha, ao que ela não quis, embora ouvisse com o coração.
O tempo passou, a rainha governava com amor o seu reino. Um dia, um estrangeiro chegou, sorrateiramente, a seu reino. Os súditos logo o encaminharam à rainha, já que nada acontecia ali sem que ela muito analisasse.
A rainha simpatizou muito com o tal estrangeiro que, faceiramente, apresentou-se a ela:
- Olá, vossa alteza! Gostaria muito de passar uma temporada convosco aqui, em teu reino. Posso fazer morada aqui?
A rainha analisou por um bom tempo, não parecia ser um grande problema... Ela, condescendente, disse que sim:
- Mas terás de conhecer bastante o reino e entender sua dinâmica. Nada aqui funciona bem sem que todas as partes estejam bem integradas. Entenda: muito dano já foi causado ao reino e diretamente a mim por conta de imprudências. Então, estrangeiro, tens permissão para ficar o quanto quiseres. Somente peço que tenhas paciência e determinação para que eu possa avaliar bem se podes ficar entre nós.
O estrangeiro concordou. O tempo se passou, nenhum dia sem que a rainha prestasse atenção aos cuidados do estrangeiro. Alguns dias, ela estava ocupada demais com alguns assuntos do reino, mas fato é que ela nunca deixou de perceber o cuidado que ele tinha com tudo e todos. Principalmente todos os assuntos que tinham a ver com ela.
Fato é que o estrangeiro começou a passar muito mais tempo com a rainha que com os súditos, ao ponto de, em alguns momentos, a rainha pedir conselhos ao estrangeiro, visto que ele apresentava muita sabedoria, segundo o que ela pensava.
Os súditos começaram a perceber essa aproximação e disseram à rainha que, talvez, ele fosse o rei que ela tanto esperava.
- Mas eu sempre disse a vós que nunca esperei, e nem espero, rei algum! Governo muito bem sozinha!
- Senhora... Estás já há meses pedindo conselhos do estrangeiro... Ele fascinou a senhora! Podemos sentir!
Ela recusava-se a entender tudo aquilo. Não conseguia.
Um dia, enquanto estava caminhando pelo jardim, o estrangeiro chegou-se perto da rainha para conversar. Ela expôs aquilo que os súditos estavam já, em coro, gritando a ela. O estrangeiro, então, disse que entendia, mas que não faria nada para ferir a rainha ou aos súditos, visto que ele preferia partir a ver qualquer pessoa sofrer. Foi aí, então, que a rainha entendeu...
- Estrangeiro, vieste sorrateiro. Primeiro, conquistastes meus súditos. Depois, conquistastes minha confiança. E, agora, posso admitir, sem medo, que conquistastes meu coração. - a rainha ficou rubra e um pouco sem jeito - Mas preciso perguntar-te... Tens a vontade de ser meu rei? De governar ao meu lado?
O estrangeiro foi tomado por uma felicidade muito grande, incontida ao ponto dele esboçar um larguíssimo sorriso. Ela recebeu isso como um sim, mas precisava ouvir dele.
- Sim, minha rainha. Já eras minha rainha antes mesmo de me instalar em teu reino. Hoje, que estou nele, consigo ver teu esplendor e quero compartilhar dele ao teu lado.
Eles deram-se as mãos e foram dizer aos súditos a notícia. Nenhum deles estava surpreso, visto que conheciam bem a rainha, mas rejubilaram-se.
- Hoje consigo dizer que existe, ao meu lado, alguém digno de vós, e de mim. Hoje, consigo distinguir quem poderia ser o nosso rei. E é ele, o estrangeiro. Aquele que veio sorrateiro, mas construiu casa em nossos corações e mentes de tal forma que nos enfeitiçou. Este, meus amados, é vosso rei. Contemplem-no e amem-no como eu o amo.
Ouvindo isso, todos os súditos aplaudiram de pé. Houve muita festa e gritaria quando ele foi coroado rei.
Não poderia ser diferente, existe realeza em tudo que ele tem, faz, e é.

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Música:
"Enjoy the silence", Depeche Mode.
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