"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Temple of Thought

A tarde já se punha a findar. Os raios de sol, bastante acolhedores, iam se distanciando. O frio se aproximava, mas aterrador do que nunca. Ela sentia a brisa fria acariciando sua pele com o amor de uma avó, mas o frio entrava em sua pele com o ímpeto de uma agulha.
Ela estava sentada sobre uma pedra, debaixo da árvore costumeira. Olhava para cima, analisando o movimentar das folhas e ouvindo seu farfalhar. Tudo estava como tinha de estar, ela pensou, nada está fora do lugar... eu me sinto una... Então por que esse sentimento me invade?
Enquanto ela estava ponderando sobre esse sentimento, ela sentiu o calor de uma mão conhecida tocar seu ombro. Era ele, que se chegou e se sentou ao seu lado. Ela olhou para ele, sorriu, olhou longamente nos olhos dele, que sorriram ao vê-la. Ele estava claramente com saudade dela, e ela dele. Suas conversas eram sempre muito edificantes para ambos.
Ele se sentou, respirou fundo - como quem chega de uma longa caminhada -, envolveu seu braço nela e perguntou, com voz bastante doce:
- O que se passa por essa cabeça maravilhosamente concebida pelos deuses?
Eles riram. Ela respirou fundo:
- Ah, meu Amado... Não sei bem. Eu me sinto como a brisa: necessária, porém fria. Entende? Faço parte de um todo que também me é necessário, mas tenho a sensação de que meu formato teria que ser expandido... Renovado... Mudado... - ela então deu um salto pro lado - Queria ser tempestade! É isso!
Ele se assustou um pouco e riu:
- Você queria destruir o que estivesse no seu caminho? Então, de fato, você não se identifica com o todo! Onde já se viu querer destruir aquilo de que você faz parte! - ele riu mais.
- Meu Amado... Às vezes precisamos destruir certos muros já há muito construídos para que algo novo se crie... por isso amo tempestades e de fato gostaria de fazer parte delas! Na realidade... Elas representam a expansão que eu sinto que deveria existir em mim! Existe em mim um furacão contido, que, por estar contido, dói no centro de meu coração...
- Entendo... Você não está dando vazão a seus sentimentos, novamente? Sabe muito bem que isso lhe é prejudicial, meu amor... não deve fazer isso... - ele olhou para ela com certa repreensão.
Ele não estava entendo o que ela queria dizer e, no fundo, ela sabia que ninguém entenderia por completo, porque era um sentimento novo... Que talvez só ela entendesse...
- Não, meu Amado, estou dando vazão aos meus sentimentos, de formas variadas, para pessoas diferentes, mas todas ligadas ao meu coração... Esse sentimento é na verdade uma necessidade de infinito, de romper o invólucro da carne e expandir! Crescer! Por isso tenho vontade de não existir! Mas isso dói... Dói porque não sei como não existir...
Ele estava intrigado. Algo muito estranho estava ocorrendo dentro dela. Talvez nem ela entendesse bem o porquê.
- Meu amor, isso não é reflexo de alguma carência sua? Alguma necessidade de chamar atenção? Alguma saudade incontida...? - ele ponderava e olhava as reações dela.
Ela estava plácida. Já havia refletido muito sobre esses aspectos, naquele dia e em outros. Ela chegara a uma conclusão: não era necessidade de chamar atenção e nem carência, muito menos saudade incontida. Era um sentimento novo, que ela não sabia de onde vinha e nem porque existia. Simplesmente ali estava, ali se apresentava e ali queria ficar.
- É um sentimento parecido com aquele que temos quando dormimos... Sabe? Aquele momento em que há um vazio? Não se sonha, mas também não se está acordado... É uma não-existência existente... É estranho de se pensar, mas esse sentimento se assemelha a esse momento específico do sono... - ela dizia com certo entusiasmo; ele olhava perplexo, sem entender palavra - Será que seriam seduções de Morfeu para comigo?
Ela olhou bem nos olhos dele e sentiu o desespero dele em entender o que se passava dentro daquela menina-mulher... Ele não compreendia. Afinal, como compreender um sentimento de não-existência? Um desejo de não existir? E, quando quase compreendido, como entender isso como algo que é bom e ao mesmo tempo ruim?
- Meu amor... por que isso tem te deixado mal? Eu não compreendo... Eu não consigo... É ansiedade? Deve ser! Tem certeza que não é nada daquilo que eu disse?
- Isso me causa ansiedade, e até por isso tenho sentido certo desespero com as coisas e comigo mesma... Mas tenho vontade de expansão... De arrancar minha pele e libertar meus ossos! De transbordar para todos os seres as coisas maravilhosas que sinto, me dissolver em nada e em tudo ao mesmo tempo... Deixar as borboletas interiores voarem... voarem para longe, para onde quiserem!
Ela olhava para o céu poente. O sol já quase não se podia ser visto. Uma grande interrogação se podia ser vista no rosto dele. Ele, de fato, não entendia.
- As matérias do seu ser têm estado bastante confusas... O que está acontecendo?
- Acho que algo muito profundo, intenso e maravilhoso está para acontecer... Mas tudo depende do ponto de vista! Acho que será maravilhoso para todos... Eu sinto e sei disso! E sei também que todos os meus amados serão afetados, alguns mais que os outros... Tempos maravilhosos virão! Tudo depende do ponto de vista!
- O que quer dizer com isso, meu amor? Você está me assustando...
- Partindo do princípio que toda situação tem dois lados de análise... Tudo depende do ponto de vista! Não sei como essa coisa maravilhosa se dará.,.. Mas sei que acontecerá!
- Bom, seja qual resultado for, estarei aqui para que me conte. E espero ver esse brilho intenso nos seus olhos quando acontecer... - ele ia rumando ao sol poente para ir embora.
Ela correu atrás dele e o abraçou. Agradeceu por todo amor e carinho que ele manteve por ela nesses sete anos em que ele a acompanhou, aconselhou, ajudou e amou... E ele pôde sentir a gratidão vinda dela. Mas ele também sabia que logo algo acabaria...
- Quando algo novo se instaura, algo velho se vai... não é assim? - Ele perguntou, com certo pesar na voz, e lágrimas querendo verter de seus olhos.
- Sim - ela disse, agarrada às suas costas -, mas tudo que é verdadeiro fica. E você sempre será parte de mim, meu Amado... Mesmo eu não sabendo quem você é. Bem, não sei somente seu nome... Quem você é eu sei, sempre saberei... Assim como eu sempre serei parte tua... - ela foi à frente dele e olhou nos olhos dele - agora mais que nunca, um dia, eu serei parte tua. Eu sei.
Ele sorriu, a beijou e a abraçou. Então desapareceu no fim de pôr-do-sol que existia.
~*~
Música:
"Temple of thought", Poets of the Fall.

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