"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

"Eu agora estou completamente energizado"



Meu querido,

Os começos são sempre doces: os amores são sempre perfeitos e eternos. As promessas... Ah, as promessas... Ser sempre compreensivo, ser sempre bonito, intenso, maravilhoso... Todos os começos são uma aventura maravilhosa... Mas e os meios, meu amor? Como podemos lidar com os meios?

Todo ser humano tem uma parcela amável e uma parcela detestável, e é preciso saber que nossa essência é pura. Não pura no sentido de boa, mas no sentido de imaculada, original, única. E, embora nossa parcela ruim venha sempre para boicotar nossa essência pura, ela também nos ajuda a estar presente na vida com um senso crítico bastante aguçado.
As experiências que temos existem para que aprendamos a aproveitar os momentos do agora, viver intensamente cada acontecimento, e não para que nos prendamos às máculas que nos causaram...
Como é difícil, meu amor... Como é difícil deixar o passado ir de vez... Deixar que a dor nos domine, deixar que esse romance entre nós e a dor seja algo presente e aceitar que a vida pode nos proporcionar momentos de felicidade e não há problema algum nisso...
Creio mesmo que tenhamos nos acostumado a sofrer, e, por conseguinte, passamos a amar a dor... De tal forma que, qualquer sentimento bom, seja qual for, nos deixe em parafuso quando acontece. E aí, num ato de auto-boicote, buscamos querer que a dor volte, porque esse era o estado anterior, e estávamos seguros antes.
Qual o preço da segurança? É trancafiar-se dentro de um prédio e não ir à praia para ver o mar, por medo de morrer? Morre lentamente quem não vive o agora. Também morre lentamente quem deixa de experimentar todos os sentimentos que a vida nos proporciona.
Os meios... os meios são tortuosos... mostram os dissabores que podemos enfrentar nos percalços do caminho... Desistir? Deixar de lado? Por mais que pareça mais fácil, essas nunca foram as opções mais fáceis pra mim... Eu sempre insisti muito, demais, mais do que minha capacidade poderia aguentar. Por que as pessoas são sempre o contrário de mim? Já pensou nisso, meu querido? Já notou isso?
Mesmo perante todos os indícios de que eu deveria deixar de lado, ou mesmo esquecer, eu estou lá, lembrando... guardando... protegendo... analisando tudo cuidadosamente, meticulosamente... Por que insisto tanto em mim mesma? E nos outros, ainda mais?
O que realmente me pergunto, nesse momento, é até que ponto eu vou conseguir tocar sua alma... Parece que você se afasta de mim... isso é verdade, meu querido? Existe uma armadura sendo feita em volta de você? Eu espero que seja somente meu pessimismo falando alto...
Sentimento imaculado, maculado. Tempo, seria você meu aliado? Não sei se seria meu aliado ou meu carrasco... Ao que tudo indica, um misto de ambos...
Enquanto me conheço, menos entendo posturas antigas... E agora, meu amado. eu entendo o que eu não sou e o que eu não vou suportar... E eu não vou suportar essas manchas por muito tempo... Preciso saber, preciso de detalhes... O diabo mora nos detalhes... E eles vão me amaldiçoar...
Meu querido, eu espero que você entenda que eu te amo muito, mas eu te amo o suficiente para perceber que, talvez, você esteja menos feliz comigo do que sem mim. E eu estou pronta para sair de cena se for preciso. Só me ame enquanto se sentir bem e uma pessoa melhor. Do contrário, eu não faria diferença.
Não se engane, eu não estou me negando nem esquecendo do que eu preciso... Muito pelo contrário, sei bem o que quero... E eu quero você, meu querido... como quis desde o princípio...

"Me dê todos os seus inimigos

Eu posso aguentá-los, honestamente
Isso não é uma perda de tempo
Agora estou completamente energizado"

Eu posso aguentar tudo, pois cada um tem o coração que consegue carregar... E meu coração é grande o suficiente para aguentar tudo, mas ele não é grande o suficiente para deixá-lo cair, deixá-lo sofrer... Eu vou sempre, honestamente, querer o seu melhor, meu querido...



Da sua sempre querida,
Sua Amada Imortal.

~*~
Música:
"Choose you", Cambriana.

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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Dançando com a solidão



Ela dançava. Estava no meio da multidão, pessoas de todos os tipos, etnias, crenças, desejos... As luzes piscavam imensamente. A música tomava conta de seu corpo por inteiro, e retumbava dentro de seu ser. Ela era toda música: pulava, gritava, dançava... Aproveitava cada segundo como se fosse o último.
Um observador desavisado poderia pensar que ela estava tão somente aproveitando o momento, seguindo o lema de tantos jovens que conhecia: "Viva intensamente até que a morte te encontre, pois nada se leva dessa vida que valha a pena. Depois disso, tudo acaba."
Não era isso que a movia. Percebam: ela estava perdidamente apaixonada. Inutilmente, outras pessoas se aproximavam dela e tentavam estar em sua companhia. Ela estava satisfeita com o amor que tinha em si. Era uma paixão arrebatadora, irresistível, daquelas que vivemos por semanas quase sem comer porque ela nos completa de tal forma que não sentimos nada além dessa paixão.
Qualquer pessoa que chegava perto dela, ela dizia a mesma coisa:
- Desculpe-me, mas não estou a fim hoje. Eu estou apaixonada e muito compromissada com alguém...
- Mas então por que você está numa balada, sozinha, dessa forma?
Engana-se quem pensa que ela não está acompanhada. O amor em seu peito, que transparecia pelos seus poros, demonstrava que ela sempre estava acompanhada. Mas sempre existe aquele sujeito que insiste bastante em saber todos os porquês...
Ela havia se cansado de dançar por tanto tempo. Resolveu sentar-se ao bar e, quem sabe, beber alguma coisa. Ela amava beber muito, isso a ajudava a não pensar nos problemas da vida, que já eram demais para que ela não aproveitasse momento algum de abstração. Ao sentar-se, olhou em volta; as pessoas dançavam, alucinadas. Luzes piscavam, a música estava mais alta e retumbante do que nunca. Pessoas entrelaçavam-se em beijos, abraços e amassos mais quentes nos cantos menos visíveis daquele lugar. Isso não a incomodava, na verdade até achava interessante um ambiente só conter tantas interações humanas em diferentes níveis. Tudo era captado por seus olhos, ela não perdia um só detalhe. "Seres humanos são demasiadamente interessantes para perdê-los de vista", ela pensava.
A alguns passos de distância, ela percebeu um homem seguir em sua direção, com um copo à mão e outro, também em punho. Ela respirou fundo, sabia que não seria somente uma resposta simples que o afastaria dali. "É um dos curiosos e teimosos. Vamos lá", ela pensou, ajeitando-se no banco e arrumando seus cabelos para detrás das orelhas, realmente em posição de atenção focada.
- Olá, moça. Você parece tão sozinha aí, gostaria de companhia? Na verdade... - ele colocou o copo na frente dela - trouxe isso para você. Você é muito interessante... 
- Ah, você me acha interessante? Que peculiar. Poucas pessoas acham isso. - Ela estava mentindo, ela era interessante a muitos. E ele sabia da mentira, afinal de contas, estava lá enquanto ela dançava e dizia a todos para se afastarem.
- Pois eu te acho muito interessante... Na verdade, gostaria de saber porque uma moça tão linda, tão segura de si, está sozinha numa balada... Sem amigos, ninguém a acompanhar... Por que, moça?
Ela respirou fundo, sorriu no canto da boca e olhou bem nos olhos daquele homem desconhecido, porém muito petulante:
- Eu gosto de sair sozinha. Sabe, eu amo. Estou perdidamente apaixonada. Então, saio sozinha.
- Mas então você está desacompanhada porque seu amado está em outras companhias, não é mesmo?
Novamente, ela respirou fundo e tomou seu copo por inteiro. Ela olhou de forma mais incisiva para aquele homem horrivelmente petulante e disse:
- Eu estou sempre acompanhada da minha amada. Na verdade, eu estar sozinha aqui, neste momento e em vários outros momentos nos faz muito mais próximas e conectadas do que se estivesse em companhia. 
Ele olhou com certa confusão e reprovação. Afinal de contas, ela mencionara uma amada, e ele, claramente, perdera todas as esperanças em conseguir algo com aquela mulher. Então, o que mantinha aquela mulher ali naquele local, sozinha, totalmente solitária? E por que ela estava tão feliz? 
- Quem é sua amada, se ela é tão incrível assim, moça? Deve ser, no mínimo, alguma famosa ou rica... - ele riu-se. Os olhos dela reviraram-se de incômodo.
Ela levantou-se, claramente com desdém nos olhos. As músicas continuavam tocando. As luzes continuavam piscando de modo muito atraente. Ela lentamente colocou o banco no lugar onde estava antes de se sentar, virou-se para ir embora e o homem a segurou pelo ombro:
- Você não vai me responder? Além de lésbica é sem educação?
Ela respirou fundo novamente. "Se petulância houvesse um limite, ele já haveria ultrapassado mais de um", ela pensou, enquanto voltava-se para aquele homem.
- Olhe bem, meu caro... Com quem eu me relaciono não lhe diz respeito, porém, só para que você entenda, eu vou lhe explicar por quem eu estou perdidamente apaixonada... Ela chega quando menos esperamos. Ela nos surpreende. Ela faz com que sejamos melhores para nós mesmos e para os demais. Ela nos mostra quem somos realmente, mostra o mais profundo do nosso ser. Ela nos faz perder-nos para que nos encontremos. É preciso estar preparado para recebê-la, e ela não escolhe mulheres ou homens para se relacionar. É muito o caminho contrário: são as pessoas que escolhem buscá-la. E ela recebe a todos, de braços abertos...
- Nossa, mas parece que você está falando de alguma pastora, porém isso não pode ser, porque pastoras não são lésbicas!
Ela estava quase bufando de raiva do quanto aquele ser humano em sua frente não conseguia ver além do sexo, nem por uma vez em sua vida, nem por um esforço mínimo.
- Vou deixar claro para você: eu amo a solidão. Ela é minha maior companheira e amiga. A única que está comigo em todos os momentos, a única que me entende como ninguém. Como diz aquela frase: "a solidão é meu prazer oculto onde minh'alma clama pelo vazio que me mantém viva". Nela, eu me encontro, encontro quem realmente sou, e regozijo imensamente naquilo que sou e vivo. Os momentos bons e ruins, os momentos claros e escuros como... Como uma balada realmente. O piscar das luzes diz muito do que a solidão representa pra mim, e a dança mostra a minha alegria em ser feliz com minha solidão. Bailamos juntas para que o universo se mantenha firme.
Ele olhou para ela com feição de incredulidade. Ele não podia acreditar que uma moça tão linda preferisse a solidão a estar com alguém. Ela percebera sua indignação:
- Não há ninguém a quem eu possa pertencer. Eu coloquei todos para fora, preenchi-me de mim mesma, e não cabe mais ninguém na minha caixa torácica. Mantenho meu vazio seguro, porque assim faz sentido viver. Assim faz sentido ser. E, se por um acaso, algum dia, alguém entre... Será por muito teimar, ou então por minha solidão aceitar a solidão daquele alguém. Agora, se você me dá licença, eu preciso estar próxima de minha amada para que possa ser feliz, portanto queimarei o chão um pouco...
Ela sorriu, saindo, para longe daquele homem que, ainda que compreendesse o que ela havia dito, não conseguia entender porque alguém tão incrível poderia estar sozinha. Aliás, como poderia preferir ser sozinha.
A mulher sorria, dançava com os braços pra cima, mexia sua cabeça para os lados, os quadris soltos, livres... E ela estava plena, daquele jeito. Ele a observava de longe. Não entendia, definitivamente. Mas ela entendia muito bem. Ela sabia, na verdade. Sabia que a solidão era a melhor companhia de quem realmente consegue se amar. Havia sentido, havia música, havia paz... Havia ela e seu universo interior.
Ela dançava embora o mundo ao seu redor fosse de outra natureza. E estava tudo bem.

~*~
Música:
"Ribcage", Andy Black.
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terça-feira, 9 de agosto de 2016

Eu sou Andrômeda



Ela estava sentada na varanda de sua casa. O vento lhe era leve, uma tarde de outono muito fresca e iluminada com tons pastéis do sol. Ela olhava para longe; de lá vinha um carro. Carro este que ela conhecia muito bem.
O carro estacionou a alguns metros de distância. Um homem desceu como um raio do carro em direção a ela, que se encontrava em estado pensativo e não havia ligado para o estado de espírito do homem. Na verdade, até havia o notado, mas não queria se abalar. "Não desta vez, eu não vou me abalar por ninguém mais a não ser eu mesma", pensou.
- Como você pôde ter a pachorra de me deixar falando sozinho lá no bar? Você não tem coração? - ele disse, esbravejando à sua face. 
As gotículas dos lábios dele espirravam nos olhos dela, em suas bochechas, seus lábios... "Convoque seu buda, eles dizem. Bem, vamos tentar", ela pensou novamente, respirando fundo.
- Como você pode ser tão insensível? Você só percebe suas necessidades, você é uma egoísta, egocêntrica! Não pensa em ninguém mais além de você! Estou sendo redundante sim, porque você é uma pessoa ridiculamente imprestável! Sua ignorância e egoísmo não têm limites! 
- E baseado em que você diz tudo isso? Só porque eu saí de cena quando percebi que eu teria que me moldar aos seus caprichos pra poder estar do seu lado? - ela respondeu, com a serenidade de quem sabe bem quem era e quem ele era.
Ele paralisou-se. Sabia que ela era capaz de uma perspicácia infindável, mas nunca esperou ouvir isso dela. E ele sabia que era verdade, por isso não contestou.
- Você não quer pessoas ao seu lado para transbordarem com você. Você quer moldar pessoas ao seu bel prazer. Você quer um padrão certo de pessoas, e eu não me submeterei a isso... As pessoas ao seu redor parecem querer se moldar aos seus gostos para estarem perto de você... Se pensa que eu farei o mesmo, está bem enganado. Só me moldo àquilo que é anseio de minha alma, não a pessoas.
Ele olhou longamente para ela, e sabia que ela havia analisado muito todas as questões envolvidas para, depois, falar. Ele sabia o rigor de observação daquela que ele mirava, admirava e amava.
Ela se levantou, andou até a cerca que havia em volta da varanda, apoiou-se lá e meneou a cabeça de um lado para o outro, tomando ar a cada movimento.
- Você me conheceu num estado de mudança, e esse estado, por vezes, é constante. Mas, se há uma coisa que eu não me permitirei é me perder por qualquer motivo que não seja conhecimento de mim mesma. E espero que hajam pessoas ao meu redor que me indiquem quando estiver me perdendo por outros, e não por mim mesma. Porque isso é algo que não me permitirei nunca mais. Nem por você, nem por ninguém. Repito: só me permitirei me moldar àquilo que é anseio de minha alma.
Ele olhou profundamente para ela. Sabia que ela estava sendo sincera o tempo todo, sempre fora assim. E isso o encantava nela, toda a existência dela na forma que ele conhecera o encantara muito... E ele percebia que não havia porquê querer moldá-la. Ele não tinha esse direito.
- Meu amor... Perdoe-me... Eu havia me esquecido que não tenho direito algum sobre qualquer ser humano... Por vezes posso ser bastante egocêntrico, você me conhece bem... há quanto tempo não discutimos juntos, e igualmente vivemos momentos incríveis juntos... Perdoe-me se tentei lhe moldar... Mas é que você irrompeu por aquela porta do bar sem nem dizer pra onde iria... Não entendi bem nem o que te irritou... Aí vim atrás de você.
Ela olhou para ele longamente. Sorriu levemente e foi em sua direção:
- Você me conhece bem, mesmo sem dizer pra onde iria, você me encontrou. Viu como não é preciso ditar regras para que nos demos bem? Eu irrompi por aquela porta porque você queria que eu te entendesse a qualquer custo. Entenda você uma coisa: somos universos, cada um de nós. Planetas colidem quando universos se encontram, e não há problema nisso. O que quero dizer é que haverá momentos em que não nos entenderemos, não concordaremos, e não há razão para frustração ou sofrimento... Somos um, mas também somos dois. Entende?
Ele entendia, desde o princípio ela falara isso a ele, mas ele relutava em entender. Após o ocorrido, ele podia entender melhor. Seus olhos marejaram-se. Ele a abraçou longamente.
O sol se punha, e com ele iam embora todas as incertezas de que ela o amava. E ela sabia que ele a amava também. Universos tão distintos, mas também tão semelhantes, tão próximos...

~*~
Música:
"Face to face", Cambriana:
"Se você puder se manter de pé algum dia
Finalmente nos veremos cara a cara
É algo que eu vou aprender
Se você puder se manter de pé algum dia

Ainda há um oceano entre nós, amor
Tudo machuca quando não é o suficiente
Se você confiar nas noites mais frias
Olhe para minha cabeça para não perder de vista"

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© 2011 Sempre no coração, haja o que houver..., AllRightsReserved.

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