"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Dançando com a solidão



Ela dançava. Estava no meio da multidão, pessoas de todos os tipos, etnias, crenças, desejos... As luzes piscavam imensamente. A música tomava conta de seu corpo por inteiro, e retumbava dentro de seu ser. Ela era toda música: pulava, gritava, dançava... Aproveitava cada segundo como se fosse o último.
Um observador desavisado poderia pensar que ela estava tão somente aproveitando o momento, seguindo o lema de tantos jovens que conhecia: "Viva intensamente até que a morte te encontre, pois nada se leva dessa vida que valha a pena. Depois disso, tudo acaba."
Não era isso que a movia. Percebam: ela estava perdidamente apaixonada. Inutilmente, outras pessoas se aproximavam dela e tentavam estar em sua companhia. Ela estava satisfeita com o amor que tinha em si. Era uma paixão arrebatadora, irresistível, daquelas que vivemos por semanas quase sem comer porque ela nos completa de tal forma que não sentimos nada além dessa paixão.
Qualquer pessoa que chegava perto dela, ela dizia a mesma coisa:
- Desculpe-me, mas não estou a fim hoje. Eu estou apaixonada e muito compromissada com alguém...
- Mas então por que você está numa balada, sozinha, dessa forma?
Engana-se quem pensa que ela não está acompanhada. O amor em seu peito, que transparecia pelos seus poros, demonstrava que ela sempre estava acompanhada. Mas sempre existe aquele sujeito que insiste bastante em saber todos os porquês...
Ela havia se cansado de dançar por tanto tempo. Resolveu sentar-se ao bar e, quem sabe, beber alguma coisa. Ela amava beber muito, isso a ajudava a não pensar nos problemas da vida, que já eram demais para que ela não aproveitasse momento algum de abstração. Ao sentar-se, olhou em volta; as pessoas dançavam, alucinadas. Luzes piscavam, a música estava mais alta e retumbante do que nunca. Pessoas entrelaçavam-se em beijos, abraços e amassos mais quentes nos cantos menos visíveis daquele lugar. Isso não a incomodava, na verdade até achava interessante um ambiente só conter tantas interações humanas em diferentes níveis. Tudo era captado por seus olhos, ela não perdia um só detalhe. "Seres humanos são demasiadamente interessantes para perdê-los de vista", ela pensava.
A alguns passos de distância, ela percebeu um homem seguir em sua direção, com um copo à mão e outro, também em punho. Ela respirou fundo, sabia que não seria somente uma resposta simples que o afastaria dali. "É um dos curiosos e teimosos. Vamos lá", ela pensou, ajeitando-se no banco e arrumando seus cabelos para detrás das orelhas, realmente em posição de atenção focada.
- Olá, moça. Você parece tão sozinha aí, gostaria de companhia? Na verdade... - ele colocou o copo na frente dela - trouxe isso para você. Você é muito interessante... 
- Ah, você me acha interessante? Que peculiar. Poucas pessoas acham isso. - Ela estava mentindo, ela era interessante a muitos. E ele sabia da mentira, afinal de contas, estava lá enquanto ela dançava e dizia a todos para se afastarem.
- Pois eu te acho muito interessante... Na verdade, gostaria de saber porque uma moça tão linda, tão segura de si, está sozinha numa balada... Sem amigos, ninguém a acompanhar... Por que, moça?
Ela respirou fundo, sorriu no canto da boca e olhou bem nos olhos daquele homem desconhecido, porém muito petulante:
- Eu gosto de sair sozinha. Sabe, eu amo. Estou perdidamente apaixonada. Então, saio sozinha.
- Mas então você está desacompanhada porque seu amado está em outras companhias, não é mesmo?
Novamente, ela respirou fundo e tomou seu copo por inteiro. Ela olhou de forma mais incisiva para aquele homem horrivelmente petulante e disse:
- Eu estou sempre acompanhada da minha amada. Na verdade, eu estar sozinha aqui, neste momento e em vários outros momentos nos faz muito mais próximas e conectadas do que se estivesse em companhia. 
Ele olhou com certa confusão e reprovação. Afinal de contas, ela mencionara uma amada, e ele, claramente, perdera todas as esperanças em conseguir algo com aquela mulher. Então, o que mantinha aquela mulher ali naquele local, sozinha, totalmente solitária? E por que ela estava tão feliz? 
- Quem é sua amada, se ela é tão incrível assim, moça? Deve ser, no mínimo, alguma famosa ou rica... - ele riu-se. Os olhos dela reviraram-se de incômodo.
Ela levantou-se, claramente com desdém nos olhos. As músicas continuavam tocando. As luzes continuavam piscando de modo muito atraente. Ela lentamente colocou o banco no lugar onde estava antes de se sentar, virou-se para ir embora e o homem a segurou pelo ombro:
- Você não vai me responder? Além de lésbica é sem educação?
Ela respirou fundo novamente. "Se petulância houvesse um limite, ele já haveria ultrapassado mais de um", ela pensou, enquanto voltava-se para aquele homem.
- Olhe bem, meu caro... Com quem eu me relaciono não lhe diz respeito, porém, só para que você entenda, eu vou lhe explicar por quem eu estou perdidamente apaixonada... Ela chega quando menos esperamos. Ela nos surpreende. Ela faz com que sejamos melhores para nós mesmos e para os demais. Ela nos mostra quem somos realmente, mostra o mais profundo do nosso ser. Ela nos faz perder-nos para que nos encontremos. É preciso estar preparado para recebê-la, e ela não escolhe mulheres ou homens para se relacionar. É muito o caminho contrário: são as pessoas que escolhem buscá-la. E ela recebe a todos, de braços abertos...
- Nossa, mas parece que você está falando de alguma pastora, porém isso não pode ser, porque pastoras não são lésbicas!
Ela estava quase bufando de raiva do quanto aquele ser humano em sua frente não conseguia ver além do sexo, nem por uma vez em sua vida, nem por um esforço mínimo.
- Vou deixar claro para você: eu amo a solidão. Ela é minha maior companheira e amiga. A única que está comigo em todos os momentos, a única que me entende como ninguém. Como diz aquela frase: "a solidão é meu prazer oculto onde minh'alma clama pelo vazio que me mantém viva". Nela, eu me encontro, encontro quem realmente sou, e regozijo imensamente naquilo que sou e vivo. Os momentos bons e ruins, os momentos claros e escuros como... Como uma balada realmente. O piscar das luzes diz muito do que a solidão representa pra mim, e a dança mostra a minha alegria em ser feliz com minha solidão. Bailamos juntas para que o universo se mantenha firme.
Ele olhou para ela com feição de incredulidade. Ele não podia acreditar que uma moça tão linda preferisse a solidão a estar com alguém. Ela percebera sua indignação:
- Não há ninguém a quem eu possa pertencer. Eu coloquei todos para fora, preenchi-me de mim mesma, e não cabe mais ninguém na minha caixa torácica. Mantenho meu vazio seguro, porque assim faz sentido viver. Assim faz sentido ser. E, se por um acaso, algum dia, alguém entre... Será por muito teimar, ou então por minha solidão aceitar a solidão daquele alguém. Agora, se você me dá licença, eu preciso estar próxima de minha amada para que possa ser feliz, portanto queimarei o chão um pouco...
Ela sorriu, saindo, para longe daquele homem que, ainda que compreendesse o que ela havia dito, não conseguia entender porque alguém tão incrível poderia estar sozinha. Aliás, como poderia preferir ser sozinha.
A mulher sorria, dançava com os braços pra cima, mexia sua cabeça para os lados, os quadris soltos, livres... E ela estava plena, daquele jeito. Ele a observava de longe. Não entendia, definitivamente. Mas ela entendia muito bem. Ela sabia, na verdade. Sabia que a solidão era a melhor companhia de quem realmente consegue se amar. Havia sentido, havia música, havia paz... Havia ela e seu universo interior.
Ela dançava embora o mundo ao seu redor fosse de outra natureza. E estava tudo bem.

~*~
Música:
"Ribcage", Andy Black.

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