Ela estava sentada na varanda de sua casa. O vento lhe era leve, uma tarde de outono muito fresca e iluminada com tons pastéis do sol. Ela olhava para longe; de lá vinha um carro. Carro este que ela conhecia muito bem.
O carro estacionou a alguns metros de distância. Um homem desceu como um raio do carro em direção a ela, que se encontrava em estado pensativo e não havia ligado para o estado de espírito do homem. Na verdade, até havia o notado, mas não queria se abalar. "Não desta vez, eu não vou me abalar por ninguém mais a não ser eu mesma", pensou.
- Como você pôde ter a pachorra de me deixar falando sozinho lá no bar? Você não tem coração? - ele disse, esbravejando à sua face.
As gotículas dos lábios dele espirravam nos olhos dela, em suas bochechas, seus lábios... "Convoque seu buda, eles dizem. Bem, vamos tentar", ela pensou novamente, respirando fundo.
- Como você pode ser tão insensível? Você só percebe suas necessidades, você é uma egoísta, egocêntrica! Não pensa em ninguém mais além de você! Estou sendo redundante sim, porque você é uma pessoa ridiculamente imprestável! Sua ignorância e egoísmo não têm limites!
- E baseado em que você diz tudo isso? Só porque eu saí de cena quando percebi que eu teria que me moldar aos seus caprichos pra poder estar do seu lado? - ela respondeu, com a serenidade de quem sabe bem quem era e quem ele era.
Ele paralisou-se. Sabia que ela era capaz de uma perspicácia infindável, mas nunca esperou ouvir isso dela. E ele sabia que era verdade, por isso não contestou.
- Você não quer pessoas ao seu lado para transbordarem com você. Você quer moldar pessoas ao seu bel prazer. Você quer um padrão certo de pessoas, e eu não me submeterei a isso... As pessoas ao seu redor parecem querer se moldar aos seus gostos para estarem perto de você... Se pensa que eu farei o mesmo, está bem enganado. Só me moldo àquilo que é anseio de minha alma, não a pessoas.
Ele olhou longamente para ela, e sabia que ela havia analisado muito todas as questões envolvidas para, depois, falar. Ele sabia o rigor de observação daquela que ele mirava, admirava e amava.
Ela se levantou, andou até a cerca que havia em volta da varanda, apoiou-se lá e meneou a cabeça de um lado para o outro, tomando ar a cada movimento.
- Você me conheceu num estado de mudança, e esse estado, por vezes, é constante. Mas, se há uma coisa que eu não me permitirei é me perder por qualquer motivo que não seja conhecimento de mim mesma. E espero que hajam pessoas ao meu redor que me indiquem quando estiver me perdendo por outros, e não por mim mesma. Porque isso é algo que não me permitirei nunca mais. Nem por você, nem por ninguém. Repito: só me permitirei me moldar àquilo que é anseio de minha alma.
Ele olhou profundamente para ela. Sabia que ela estava sendo sincera o tempo todo, sempre fora assim. E isso o encantava nela, toda a existência dela na forma que ele conhecera o encantara muito... E ele percebia que não havia porquê querer moldá-la. Ele não tinha esse direito.
- Meu amor... Perdoe-me... Eu havia me esquecido que não tenho direito algum sobre qualquer ser humano... Por vezes posso ser bastante egocêntrico, você me conhece bem... há quanto tempo não discutimos juntos, e igualmente vivemos momentos incríveis juntos... Perdoe-me se tentei lhe moldar... Mas é que você irrompeu por aquela porta do bar sem nem dizer pra onde iria... Não entendi bem nem o que te irritou... Aí vim atrás de você.
Ela olhou para ele longamente. Sorriu levemente e foi em sua direção:
- Você me conhece bem, mesmo sem dizer pra onde iria, você me encontrou. Viu como não é preciso ditar regras para que nos demos bem? Eu irrompi por aquela porta porque você queria que eu te entendesse a qualquer custo. Entenda você uma coisa: somos universos, cada um de nós. Planetas colidem quando universos se encontram, e não há problema nisso. O que quero dizer é que haverá momentos em que não nos entenderemos, não concordaremos, e não há razão para frustração ou sofrimento... Somos um, mas também somos dois. Entende?
Ele entendia, desde o princípio ela falara isso a ele, mas ele relutava em entender. Após o ocorrido, ele podia entender melhor. Seus olhos marejaram-se. Ele a abraçou longamente.
O sol se punha, e com ele iam embora todas as incertezas de que ela o amava. E ela sabia que ele a amava também. Universos tão distintos, mas também tão semelhantes, tão próximos...
~*~
Música:
"Face to face", Cambriana:
"Se você puder se manter de pé algum dia
Finalmente nos veremos cara a cara
É algo que eu vou aprender
Se você puder se manter de pé algum dia
Ainda há um oceano entre nós, amor
Tudo machuca quando não é o suficiente
Se você confiar nas noites mais frias
Olhe para minha cabeça para não perder de vista"
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