"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

La maison de la mort et de la douleur

Ele resolveu perambular pelas mansões do amor.
Quando lá chegou, viu que ela era guardada por três chaves cujos nomes estavam ocultados, porém era fácil identificar. Acima das chaves havia um aviso:
"Essas são as chaves para abrir a mansão do amor. Você tem três opções, porém com todas elas aprenderá lições vitais para si. Escolha com prudência e com seu coração."
Ele respirou fundo e continuou lendo:
"As chaves são: ERUDIÇÃO, SABEDORIA e PRAZER. Escolha a que tocar sua alma e seu coração e não haverá arrependimento na jornada."
Ele sabia bem qual escolher. Escolheu a do meio, da sabedoria. Ele então resolveu abrir os portões da mansão. Havia um jardim enorme e lindo, cheio de macieiras nele. Havia também algumas colméias e muitas roseiras vermelhas. Na porta da mansão, havia um pomo de ouro dentro de uma concha aberta. Ele sabia bem onde estava.
Adentrou os portoes e as infindáveis portas sem medo. Passou por todos os testes que se lhe apresentaram, e aprendeu muitas lições dentro daquele lugar, mas nunca viu seu anfitrião ou sua anfitriã, ainda não sabia quem era.
Um dia, então, ele encontrou uma sala muito ampla na mansão, que parecia ser o coração da casa. Lá, havia novamente o símbolo da entrada pintado na porta: uma concha com um pomo de ouro dentro, como uma pérola.
Ele, com certo receio, empurrou as pesadas portas e viu no fim do salão um trono todo adornado de flores dos mais diversos tipos e nos mais diversos estados: em broto, recém abertas, plenas de si e mortas. E, sentada no trono, estava uma figura cujo semblante era belo como o amanhecer, seu corpo era bem feito como uma pintura. Seus cabelos reluziam por conta da luz que entrava o cômodo pelos vitrais. Seu semblante era sereno, porém ele sabia que não era uma mulher qualquer... Algum motivo existia para sua anfitriã se mostrar somente agora.
- Sei que terei de convencê-lo a me saudar, mas fui eu quem te chamei primeiro. Não precisas dizer palavra, sei o que se passa em teu coração. Passaste muito tempo na mansão, buscando aquilo que abristes. O amor sábio. Saiba que não é fácil mesmo encarar-me... Mas uma vez que me encarares, todas as outras vezes que testemunhares minha face e meu poder, poderás lidar de forma sábia e amorosa, como tanto o quisestes...
Ele estava ouvindo atento, os ouvidos do corpo e da alma ouvindo tudo com muita receptividade.
- Colocastes a si mesmo na minha jornada. Quebrastes imagens falsas de si e de mim. Rompestes ciclos que não haviam a necessidade de existir há muito tempo já. Provastes as delícias do amor apaixonado. Provarás ainda as delícias do amor velho, o amor jovem. Mas, para isso, é preciso morrer.
- Eu preciso morrer? Como? Em que sentido?
- Certas coisas que vão embora voltam para nos mostrar lições ainda maiores. Certas dores prenunciam aprendizados. Então tens duas opções: aprender ou rejeitar. Na primeira, encontrarás aquilo que buscas, a chave que usastes. Na segunda, não há outra opção que não deixar minha mansão, para então, quem sabe, outro dia retornares.
- Eu escolho aprender, estou aqui para isso.
- Então sabes que estás testemunhando a morte. Ela é assim. Rápida, dolorida, sem adornos. Ela existe. Ela é quem faz deixar ir para deixar transformar. Sem filosofias, sem máscaras. A morte é isso: um arrancar da flor pela raiz, ou às vezes pelo caule. Um despetalar nunca é tranquilo... A morte é dura, fria, gélida... Faz doer.
- Mas não é uma morte literal, isso seria somente se fosse literal, e nao é...
- Existem várias mortes, bem sabes. E essa é a morte de algo que precisas descobrir que está morrendo. Pense, reflita. O passado veio usar o presente para matar algo. Sinta, ouça. O que morreu? Há semelhança, há conexão, há "coincidência"... - ela sorriu para ele - percebes?
- Ainda não vejo claramente e isso para mim talvez não faça nenhum sentido...
- O 6 se tornando 7... A Torre que veio me visitar tempos atrás, anunciando a quebra, a morte de algo, a destruição de algo... Sinta, perceba...
- Mas não seria o arcano d'A Morte e não d'A Torre? Isso não faz sentido.
- A Morte lida com o aceitar. A Torre lida com a dor, a destruição. É A Torre que vem ensinar que há aprendizado nos escombros, há que se pegar aquilo que ainda resta de essência para então elevar nova Torre. Depois da morte, o que sobra? O que há nos teus escombros que vale a pena manter? Como amar sem punir a si e nem a quem se ama? Como lidar com a decepção causada pelo ser amado sem intoxicar o amor?
Ele se aquietou. Precisava pensar. Precisava ponderar se aquilo tudo fazia mesmo sentido.
- Podes até pensar que sentido não há, mas olhe no fundo de tua alma e verás que sou eu agindo. Não no físico. Nos mais sutis... E que mais afetam muitas vezes... A dor do teu coração, bem como da mansão que nele existe, é forte... Quase incomensurável... Mas como aprender com essa dor? A morte vem para aqueles que sabem lidar com ela. Não há escapatória, não há desculpa... Como identificá-la quando ela chega? Olhos atentos são o suficiente? Estás pronto para me saudar?
Ele olhou fixamente para aquela feição delicadamente severa. Não sabia bem o que responder. Mas seu coração ardia em dor. Ainda assim, ele resolveu saudá-la, já que escapatória não haveria...
- Eu vos saúdo, senhora da morte. Eu vos saúdo, amantíssima Epitumbidia. Que dancemos sobre os túmulos e sobre os escombros. Que as lições aprendidas em vossa mansão sirvam de regozijo futuro.
- Uma chave leva às outras. Escolhestes a correta, a mais segura... Que a morte possa te ensinar aqui em minha mansão. Abençoado és.
Ele então ficou lá, ajoelhado, prostrado. A porta se fechou, e lá ele se manteve para aprender tudo o que precisaria.

~*~

"Eu achei que já havia me machucado antes
Mas nunca ninguém me deixou tão ferido
Suas palavras cortam mais do que faca
Agora preciso de alguém para me trazer a vida
Sinto que estou afundando
Mas eu sei que conseguirei sair vivo
Se eu parar de te chamar de meu amor
E seguir em frente

Você me vê sangrar até que não possa mais respirar
Eu estou tremendo, caindo de joelhos
E agora que estou sem seus beijos
Vou precisar de pontos
Estou tropeçando em mim mesmo
Sofrendo, implorando por sua ajuda
E agora que estou sem seus beijos
Vou precisar de pontos

Assim como uma mariposa é atraída pelo fogo
Oh, você me atraiu, eu não podia sentir dor
Seu coração amargo e frio ao toque
Agora vou colher o que eu plantei
Estou sozinho com a minha raiva
Sinto que estou afundando
Mas eu sei que vou conseguir sair vivo
Se eu parar de chama-la de meu amor
E seguir em frente

[...]
Agulha e a linha
Tenho que tirar você da minha cabeça
Agulha e a linha
Vou acabar morto" - "Stitches", Shawn Mendes.

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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Temple of Thought

A tarde já se punha a findar. Os raios de sol, bastante acolhedores, iam se distanciando. O frio se aproximava, mas aterrador do que nunca. Ela sentia a brisa fria acariciando sua pele com o amor de uma avó, mas o frio entrava em sua pele com o ímpeto de uma agulha.
Ela estava sentada sobre uma pedra, debaixo da árvore costumeira. Olhava para cima, analisando o movimentar das folhas e ouvindo seu farfalhar. Tudo estava como tinha de estar, ela pensou, nada está fora do lugar... eu me sinto una... Então por que esse sentimento me invade?
Enquanto ela estava ponderando sobre esse sentimento, ela sentiu o calor de uma mão conhecida tocar seu ombro. Era ele, que se chegou e se sentou ao seu lado. Ela olhou para ele, sorriu, olhou longamente nos olhos dele, que sorriram ao vê-la. Ele estava claramente com saudade dela, e ela dele. Suas conversas eram sempre muito edificantes para ambos.
Ele se sentou, respirou fundo - como quem chega de uma longa caminhada -, envolveu seu braço nela e perguntou, com voz bastante doce:
- O que se passa por essa cabeça maravilhosamente concebida pelos deuses?
Eles riram. Ela respirou fundo:
- Ah, meu Amado... Não sei bem. Eu me sinto como a brisa: necessária, porém fria. Entende? Faço parte de um todo que também me é necessário, mas tenho a sensação de que meu formato teria que ser expandido... Renovado... Mudado... - ela então deu um salto pro lado - Queria ser tempestade! É isso!
Ele se assustou um pouco e riu:
- Você queria destruir o que estivesse no seu caminho? Então, de fato, você não se identifica com o todo! Onde já se viu querer destruir aquilo de que você faz parte! - ele riu mais.
- Meu Amado... Às vezes precisamos destruir certos muros já há muito construídos para que algo novo se crie... por isso amo tempestades e de fato gostaria de fazer parte delas! Na realidade... Elas representam a expansão que eu sinto que deveria existir em mim! Existe em mim um furacão contido, que, por estar contido, dói no centro de meu coração...
- Entendo... Você não está dando vazão a seus sentimentos, novamente? Sabe muito bem que isso lhe é prejudicial, meu amor... não deve fazer isso... - ele olhou para ela com certa repreensão.
Ele não estava entendo o que ela queria dizer e, no fundo, ela sabia que ninguém entenderia por completo, porque era um sentimento novo... Que talvez só ela entendesse...
- Não, meu Amado, estou dando vazão aos meus sentimentos, de formas variadas, para pessoas diferentes, mas todas ligadas ao meu coração... Esse sentimento é na verdade uma necessidade de infinito, de romper o invólucro da carne e expandir! Crescer! Por isso tenho vontade de não existir! Mas isso dói... Dói porque não sei como não existir...
Ele estava intrigado. Algo muito estranho estava ocorrendo dentro dela. Talvez nem ela entendesse bem o porquê.
- Meu amor, isso não é reflexo de alguma carência sua? Alguma necessidade de chamar atenção? Alguma saudade incontida...? - ele ponderava e olhava as reações dela.
Ela estava plácida. Já havia refletido muito sobre esses aspectos, naquele dia e em outros. Ela chegara a uma conclusão: não era necessidade de chamar atenção e nem carência, muito menos saudade incontida. Era um sentimento novo, que ela não sabia de onde vinha e nem porque existia. Simplesmente ali estava, ali se apresentava e ali queria ficar.
- É um sentimento parecido com aquele que temos quando dormimos... Sabe? Aquele momento em que há um vazio? Não se sonha, mas também não se está acordado... É uma não-existência existente... É estranho de se pensar, mas esse sentimento se assemelha a esse momento específico do sono... - ela dizia com certo entusiasmo; ele olhava perplexo, sem entender palavra - Será que seriam seduções de Morfeu para comigo?
Ela olhou bem nos olhos dele e sentiu o desespero dele em entender o que se passava dentro daquela menina-mulher... Ele não compreendia. Afinal, como compreender um sentimento de não-existência? Um desejo de não existir? E, quando quase compreendido, como entender isso como algo que é bom e ao mesmo tempo ruim?
- Meu amor... por que isso tem te deixado mal? Eu não compreendo... Eu não consigo... É ansiedade? Deve ser! Tem certeza que não é nada daquilo que eu disse?
- Isso me causa ansiedade, e até por isso tenho sentido certo desespero com as coisas e comigo mesma... Mas tenho vontade de expansão... De arrancar minha pele e libertar meus ossos! De transbordar para todos os seres as coisas maravilhosas que sinto, me dissolver em nada e em tudo ao mesmo tempo... Deixar as borboletas interiores voarem... voarem para longe, para onde quiserem!
Ela olhava para o céu poente. O sol já quase não se podia ser visto. Uma grande interrogação se podia ser vista no rosto dele. Ele, de fato, não entendia.
- As matérias do seu ser têm estado bastante confusas... O que está acontecendo?
- Acho que algo muito profundo, intenso e maravilhoso está para acontecer... Mas tudo depende do ponto de vista! Acho que será maravilhoso para todos... Eu sinto e sei disso! E sei também que todos os meus amados serão afetados, alguns mais que os outros... Tempos maravilhosos virão! Tudo depende do ponto de vista!
- O que quer dizer com isso, meu amor? Você está me assustando...
- Partindo do princípio que toda situação tem dois lados de análise... Tudo depende do ponto de vista! Não sei como essa coisa maravilhosa se dará.,.. Mas sei que acontecerá!
- Bom, seja qual resultado for, estarei aqui para que me conte. E espero ver esse brilho intenso nos seus olhos quando acontecer... - ele ia rumando ao sol poente para ir embora.
Ela correu atrás dele e o abraçou. Agradeceu por todo amor e carinho que ele manteve por ela nesses sete anos em que ele a acompanhou, aconselhou, ajudou e amou... E ele pôde sentir a gratidão vinda dela. Mas ele também sabia que logo algo acabaria...
- Quando algo novo se instaura, algo velho se vai... não é assim? - Ele perguntou, com certo pesar na voz, e lágrimas querendo verter de seus olhos.
- Sim - ela disse, agarrada às suas costas -, mas tudo que é verdadeiro fica. E você sempre será parte de mim, meu Amado... Mesmo eu não sabendo quem você é. Bem, não sei somente seu nome... Quem você é eu sei, sempre saberei... Assim como eu sempre serei parte tua... - ela foi à frente dele e olhou nos olhos dele - agora mais que nunca, um dia, eu serei parte tua. Eu sei.
Ele sorriu, a beijou e a abraçou. Então desapareceu no fim de pôr-do-sol que existia.
~*~
Música:
"Temple of thought", Poets of the Fall.

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