"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Eu sou Andrômeda



Ela estava sentada na varanda de sua casa. O vento lhe era leve, uma tarde de outono muito fresca e iluminada com tons pastéis do sol. Ela olhava para longe; de lá vinha um carro. Carro este que ela conhecia muito bem.
O carro estacionou a alguns metros de distância. Um homem desceu como um raio do carro em direção a ela, que se encontrava em estado pensativo e não havia ligado para o estado de espírito do homem. Na verdade, até havia o notado, mas não queria se abalar. "Não desta vez, eu não vou me abalar por ninguém mais a não ser eu mesma", pensou.
- Como você pôde ter a pachorra de me deixar falando sozinho lá no bar? Você não tem coração? - ele disse, esbravejando à sua face. 
As gotículas dos lábios dele espirravam nos olhos dela, em suas bochechas, seus lábios... "Convoque seu buda, eles dizem. Bem, vamos tentar", ela pensou novamente, respirando fundo.
- Como você pode ser tão insensível? Você só percebe suas necessidades, você é uma egoísta, egocêntrica! Não pensa em ninguém mais além de você! Estou sendo redundante sim, porque você é uma pessoa ridiculamente imprestável! Sua ignorância e egoísmo não têm limites! 
- E baseado em que você diz tudo isso? Só porque eu saí de cena quando percebi que eu teria que me moldar aos seus caprichos pra poder estar do seu lado? - ela respondeu, com a serenidade de quem sabe bem quem era e quem ele era.
Ele paralisou-se. Sabia que ela era capaz de uma perspicácia infindável, mas nunca esperou ouvir isso dela. E ele sabia que era verdade, por isso não contestou.
- Você não quer pessoas ao seu lado para transbordarem com você. Você quer moldar pessoas ao seu bel prazer. Você quer um padrão certo de pessoas, e eu não me submeterei a isso... As pessoas ao seu redor parecem querer se moldar aos seus gostos para estarem perto de você... Se pensa que eu farei o mesmo, está bem enganado. Só me moldo àquilo que é anseio de minha alma, não a pessoas.
Ele olhou longamente para ela, e sabia que ela havia analisado muito todas as questões envolvidas para, depois, falar. Ele sabia o rigor de observação daquela que ele mirava, admirava e amava.
Ela se levantou, andou até a cerca que havia em volta da varanda, apoiou-se lá e meneou a cabeça de um lado para o outro, tomando ar a cada movimento.
- Você me conheceu num estado de mudança, e esse estado, por vezes, é constante. Mas, se há uma coisa que eu não me permitirei é me perder por qualquer motivo que não seja conhecimento de mim mesma. E espero que hajam pessoas ao meu redor que me indiquem quando estiver me perdendo por outros, e não por mim mesma. Porque isso é algo que não me permitirei nunca mais. Nem por você, nem por ninguém. Repito: só me permitirei me moldar àquilo que é anseio de minha alma.
Ele olhou profundamente para ela. Sabia que ela estava sendo sincera o tempo todo, sempre fora assim. E isso o encantava nela, toda a existência dela na forma que ele conhecera o encantara muito... E ele percebia que não havia porquê querer moldá-la. Ele não tinha esse direito.
- Meu amor... Perdoe-me... Eu havia me esquecido que não tenho direito algum sobre qualquer ser humano... Por vezes posso ser bastante egocêntrico, você me conhece bem... há quanto tempo não discutimos juntos, e igualmente vivemos momentos incríveis juntos... Perdoe-me se tentei lhe moldar... Mas é que você irrompeu por aquela porta do bar sem nem dizer pra onde iria... Não entendi bem nem o que te irritou... Aí vim atrás de você.
Ela olhou para ele longamente. Sorriu levemente e foi em sua direção:
- Você me conhece bem, mesmo sem dizer pra onde iria, você me encontrou. Viu como não é preciso ditar regras para que nos demos bem? Eu irrompi por aquela porta porque você queria que eu te entendesse a qualquer custo. Entenda você uma coisa: somos universos, cada um de nós. Planetas colidem quando universos se encontram, e não há problema nisso. O que quero dizer é que haverá momentos em que não nos entenderemos, não concordaremos, e não há razão para frustração ou sofrimento... Somos um, mas também somos dois. Entende?
Ele entendia, desde o princípio ela falara isso a ele, mas ele relutava em entender. Após o ocorrido, ele podia entender melhor. Seus olhos marejaram-se. Ele a abraçou longamente.
O sol se punha, e com ele iam embora todas as incertezas de que ela o amava. E ela sabia que ele a amava também. Universos tão distintos, mas também tão semelhantes, tão próximos...

~*~
Música:
"Face to face", Cambriana:
"Se você puder se manter de pé algum dia
Finalmente nos veremos cara a cara
É algo que eu vou aprender
Se você puder se manter de pé algum dia

Ainda há um oceano entre nós, amor
Tudo machuca quando não é o suficiente
Se você confiar nas noites mais frias
Olhe para minha cabeça para não perder de vista"

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