"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

sábado, 16 de julho de 2016

"Uma alma solitária, uma alma oceânica"


Ela estava sentada sob a árvore costumeira. O vento perpassava seus cachos levemente... Havia nele um quê de paz que, ela sabia, vinha de dentro dela também.
Era uma manhã agradável - os pássaros cantavam, as árvores eram iluminadas por um tom de luz nunca antes visto por ela... Ou, ao menos, ela nunca havia reparado.
Ela o via ao longe. Ele tinha passos largos, porém calmos. E um sorriso no rosto que nunca tinha visto. Era, ao mesmo tempo, enigmático e... feliz.
- Bom dia, meu amor... Vejo que estás mais fresca que quando te vi outrora. Será que posso saber o motivo de tua felicidade tão somática?
Ela levantou um pouco a cabeça para poder vê-lo. Estava bonito ao sol.
- Meu amado... Não sei dizer... É um sentimento oceânico que me invade, como nunca havia sido invadida antes... É tão bom que chega a doer... E não consigo pensar que pode ser que acabe um dia, pois sei da finitude das coisas... É tudo tão intenso, você sabe...
- Sei bem, meu amor... Mas, conte-me, porque estás tão agitada? Teu oceano havia tempos não era tão bravio assim... Creio que alguém está conseguindo tocar teu ser... tua essência...
Ela respirou fundo. Ele sempre sabia fazer com que ela pensasse muitas coisas além daquelas que lhe acometiam. Ela, então, sorriu.
- Há anos não sinto o que estou sentindo. Creio que só o senti quando lia a "Lira dos Vinte Anos", quando, com 15 anos, pensava que morreria aos 20, assim como o seu autor... Eu pensei que nunca encontraria alguém que revolvesse o mar bravio dentro de mim, até então sereno. Consegue entender?
Ele conseguia ver em seus olhos a vida que estava sendo desperta. Ele conseguia quase palpar a vida que estava se desenvolvendo dentro de seu ser. Havia anos que ele não a via dessa forma, desde que estabeleceram contato mais profundo... Ela era um mistério a ser desvendado, sempre fora, ainda mais agora. E ele achava que era um oceano tão profundo que talvez até ele não conseguisse lidar com tudo aquilo que estava encrustado naquele olhar...
- Consigo ver que é um titã, porém não consigo mensurar a imensidão dele... E isso, meu amor, assusta-me grandemente... Será que serás capaz de controlar este gigante? Este amor que está andando sob a Terra e manifesto dentro de ti? - ele estava deveras preocupado, nunca a vira nesse estado.
Ela então se levantou, andou de um lado para o outro, pensando acalmar-se, embora isso só aumentasse sua sensação de oceano... Profundo, intenso, bravio, engolidor de homens...
- Ele é tudo aquilo que eu pensei não existir. E é verdadeiro. Eu não entendo, não me conformo, como pode um ser humano ser capaz de tal agressividade amorosa? É uma força visceral, incontingente, deslumbrante... Vasa pelos poros do ser dele, dá pra ver claramente... Como pode um ser humano ter o amor... de um deus?
Ele então admirou-se. Termos novos, modos novos... ou seriam antigos redescobertos?
- Meu amor... que coisa maravilhosa! Talvez tenhas encontrado alguém que saiba lidar com tuas "avalanches tempestuosas"... Não estás feliz com isso?
- Estou, até demais, meu amado... E confesso que isso tudo me assusta... mas de uma forma boa. Sei quem sou, sei de meus limites. Mas também sei que amar é se arriscar, assim como viver. E eu, como bem sabe, tenho a alma oceânica... As ressacas trazem pra dentro e empurram pra fora. O profundo de minha alma pode ser assustadoramente belo e horrendo... Tudo ao mesmo tempo.
Ele percebera a vivacidade com que ela se referia a este novo estranho que ela vinha conhecendo... Estranho? Será mesmo? A familiaridade era enorme... como se sempre tivessem tido contato íntimo... Mas, ao mesmo tempo, nunca tivessem tido contato. Tudo tão familiar, mas estrangeiro ao mesmo tempo. O que havia de excitante, havia de incompreensível. Tantos sentimentos misturados... Tantas sensações juntas... Todas, dionisíacas...
Ele somente olhou bem em seus olhos, abraçou-a imensamente, intensamente, deu-lhe um beijo de adeus no rosto e foi-se...
Era assim que tinha de ser sempre, essa vontade de vida, de risco, e, ao mesmo tempo, saber da segurança que existia. Tinha de ser oceânico...

"Cante o que não puder dizer
Esqueça o que não puder tocar
Precipite-se em afundar em belos olhos
Caminhe pela minha poesia, este réquiem
Minha carta de amor a ninguém."

~*~
Música:
"Dead boy's poem", Nightwish.


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