"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

"O meu desafio é andar sozinho"

Ela sabia que desde cedo tivera que crescer muito rápido, agir com maturidade que nem conhecia. E ele sabia também muito bem disso. Por isso mesmo ainda há uma boa parcela de criança nela, mesmo após 11 anos de experiências doloridas e felizes.
A menina encontrava-se sentada debaixo da árvore costumeira, uma árvore grande e frondosa. Ela ignorava o nome dela - e quem disse que isso seria necessário?-, fato é que sempre se sentava ali para colocar seus pensamentos em ordem, principalmente aos pores-do-sol. Eram momentos mágicos aqueles. Ela pensava muito neste fim de tarde. Pensava em tudo aquilo que aprendera, e muito mais divagava naquilo que ainda aprenderia. Sabia que não seria fácil - foram muitas perdas, a maior parte dolorosas-, mas também que seria preciso.
- Como queria que você estivesse aqui para conversar comigo. Falar das coisas mais íntimas, intrínsecas em mim, para que você me clareasse as ideias, meu amado...
Ela dizia para si, em voz alta. É fato que havia anos não conversava com ele - aquele que sempre a fazia pensar e organizar seus pensamentos: ele mesmo! Porém, sabia que a culpa era dela, que o afastou de sua vida por anos, simplesmente porque julgou a vida demasiadamente rápida e ocupada para poder parar e divagar com ele.
- Ora, meu amor, eu nunca parti.  Sempre estive com você, disse que sempre estaria. - ele chegou-se perto dela e se sentou; seu coração de menina alegrou-se enfim - Por onde você esteve que não quis mais me encontrar?
Ela não sabia o que dizer. Também pudera, quase três anos de distanciamento voluntário da parte dela, e sem uma explicação completamente plausível, como mudança de cidade, estado, país, vida... Taí, eis um motivo suficiente - em partes.  Ela havia mudado de vida. Mas o quanto havia mudado? Isso não saberia dizer.
- Não se preocupe, isto não foi uma cobrança. - ele disse, tranquilizando-a com um abraço - Foi mais uma manifestação de saudade que senti por não mais conversarmos sobre as matérias do seu ser.
- Desculpe-me, meu amado, mas é que me perdi nesse mundo que adentrei, e criei, de uma forma tal que se fez difícil voltar à realidade de quem eu sou.
Ele sorriu para ela. Ela não tinha mudado tanto assim.
- Ora, parece-me que você não está tão perdida assim. Sabe até qual é o problema: aposto! - ele riu-se largamente - Mas se veio até aqui é porque precisa me contar. E eu ouvirei de todo o coração, como sempre fiz.
Ela mal havia começado a conversar com ele e já precipitava-se a chorar. Muitas coisas haviam ocorrido nesse pequeno espaço de tempo que se distanciaram - pequeno, que pareceu uma eternidade. Ela não sabia nem por onde começar, se é que havia como. Ela então olhou bem nos olhos dele e começou a contar:
- Lembra-se de como você me disse para ter coragem, entregar-me e ter paciência?
- Lembro-me como se fosse ontem, minha amada... - ele disse, tranquilizando-a e trazendo-a para si.
- Pois bem. Segui meu coração, entreguei-me àquilo que sentia ser o correto, porém meus passos me levaram a abismos profundos e intermináveis... abismos universais mesmo, que levaram consigo um pouco de mim todas as vezes que consegui, após muito esforço, sair deles. Mas como num pesadelo de que se acorda de supetão, sinto como se estivesse caindo ainda. Sinto como se esses abismos nunca fossem ter um fim e eu jamais me esborracharia no chão, mas jamais deixasse de cair... Entende o que digo?
Ela soluçava já. Não conseguia conter a avalanche de lágrimas que saía sobre sua face. Ele observava confuso quanto ao que dizer a ela. Normalmente, ele sempre teria o que dizer, mas agora não. E nem ele sabia muito bem o por quê.
- Bem, meu amor... Eu sei que é um caminho difícil o seu. Mas lembre-se que, se você nunca chega ao chão, é porque ainda não chegou ao final.
- Sei bem disso, meu amado... Mas eu queria não ter de encarar isso tudo sozinha! Será esse meu desafio? Eu queria tanto ter de volta todo o amor que eu tinha antes, tudo aquilo que perdi de forma tão dolorosa e rápida, como uma flecha sendo arrancada do meu peito: rápida e dolorosamente arrancada para que o sangue possa ser estancado mais facilmente. Contudo a ferida não se fecha, e não se fechará. Não adianta o que eu faça...
Ele parou. Olhou o quanto ela tinha se colocado em confusão naquilo tudo. Viu o quanto ela estava sofrendo por coisas que já não deveriam ser sofríveis. Coisas que ela deveria ter aprendido e deixado pra trás.
- Meu amor... - ele se pôs em frente a ela, olhando bem nos seus olhos lacrimejantes - você precisa fazer-se leve. Tudo isso te pesa muito, e não deveria mais. Guarde com você tudo aquilo de bom que sentiu e siga em frente, não olhe pra trás com a saudade que destrói, mas sim com a saudade que constrói, aquela que lembramos num dia bom, e continua sendo um dia bom.
Ela se perguntava como faria isso. Como poderia tornar-se leve depois de todo esse lamaçal de sentimentos e ações.
- Não precisa se preocupar. O tempo lhe mostrará o que fazer para deixar leve esse seu coração tão sentimental. E não importa que você jamais seja constante: essa é sua beleza mais linda! - Ele disse, já se levantando para ir-se embora - Lembre-se sempre disso: estou em você, vejo sempre o melhor de você. Nunca esqueça-se de me consultar sempre que preciso for. Você é um universo lindo.
Ela não queria que ele fosse embora, mas sabia que já era hora. Já era noite alta, estavam a conversar desde o pôr-do-sol.
Ele partiu após abraçarem-se. E ela sentiu como se fosse completa novamente. Sentiu-se um universo, enfim. Completo. Belo. Sempre em expansão e mutação.
~*~
Música:
"João de Barro" - Maria Gadú (composto por Leandro Léu). 


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