"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

domingo, 24 de julho de 2011

Jornada: "Won't you get me off of this street?"

Valkíria, após partir de casa, dirigira por horas a fio até que a estrada ficou completamente na escuridão. É verdade que ela não queria ter feito o que fez, mas já era hora de mudar toda a sua vida, hora de dar um rumo diferente àquele que seus pais queriam que ela tomasse. E essa viagem repentina de férias seria um ótimo escape, um ótimo modo de arrumar sua cabeça...
Ela dirigiu até encontrar um motel onde poderia passar a noite. Quando lá entrou, a recepcionista logo percebeu seus olhos inchados de chorar e perguntou:
- Senhorita, você está bem? Quer ajuda?
Valkíria tirou a mochila das costas e a colocou no chão. Fungando rapidamente, tirou a carteira do bolso traseiro da calça e disse:
- Estou bem sim... Você poderia por favor me dizer quanto custa uma noite aqui?
A moça achou estranha a reação de Valkíria, mas disse a ela o preço, e ela prontamente pagou a quantia necessária. É certo que ficaria sem dinheiro para comer, mas para ela era mais importante dormir nesse momento. Com as experiências anteriores ela aprendera que o sono é um bom substituto para a fome.
N'outro dia, Valkíria arrumou suas malas, bem cedo, e foi embora. Pegou a estrada para o sul, sem um rumo certo. Chorava enquanto dirigia. Suas lágrimas eram varridas pelo vento que causava enquanto dirigia a moto. Depois de certo tempo, ela viu que seu tanque estava de esvaziando. Avistou à frente um posto de gasolina e resolveu nele parar. "Está na hora mesmo de ver se consigo comer alguma coisa... Mesmo que seja algo muito gorduroso, e que por isso mesmo é barato pra caramba..."
Ela parou sua moto e pediu ao frentista que a abastecesse. Enquanto sua moto era abastecida pelo frentista, que se mostrou muito prestativo e simpático, ela adentrou a loja de conveniências. Lá ela viu umas cinco ou seis pessoas - não estava prestando atenção nas pessoas, mas sim nas coisas - e dirigiu-se ao balcão de uma pequena lanchonetezinha dali. Assim que se sentou, pediu imediantamente um cachorro quente do mais barato que houvesse. O atendente riu do pedido, mas logo percebeu o rosto triste da menina e levou o pedido a sério, perguntando se ela iria querer algum acompanhamento, como um suco ou refirgerante.
- Não, moço. Só quero o cachorro quente mesmo, por favor.
Um rapaz que estava sentado ao seu lado e prestara atenção em Valkíria desde a sua chegada olhou de soslaio para a menina. Ele era alto, cabelos um pouco compridos e castanhos, olhos da mesma cor, porte físico um tanto quanto atlético, porém não atlético de academia, mas sim, natural. Ele estava olhando profundamente para Valkíria, que estava entretida com o seu mp3, procurando alguma música dos Strokes. Ele achara muito estranho o pedido da menina, mas logo notou que ela era universitária, pois vira em sua bolsa um chaveiro da faculdade dela. Ele era também universitário, então entendeu o pedido feito. Oras, ele também estava na pior. Havia meses que só comia miojo. "Compreensível esse pedido dela... Até eu pediria, se não estivesse com muuita fome..."
Valkíria, muito de repente, percebeu que era observada, e ficou com medo. Não muito medo, mas com receio. Receio de que o rapaz fosse um psicopata ou coisa do tipo. Ela resolveu olhar de volta para ele e perguntar, olhando nos olhos dele, como sempre gostava de conversar com as pessoas, o que ele estava procurando nela que tanto mantinha o olhar dele nela. Quando virou-se para perguntar, ele disse:
- Oi, tudo bem? Meu nome é Bruno, prazer em conhecê-la... - e estendeu a mão para ela.
Ela achou muito estranha a reação do rapaz, mas estendeu a mão de volta e apertou a mão dele, um tanto que receosa.
- Olá... Meu nome é Valkíria... Por que você olha tanto pra mim? Me parece que desde que eu cheguei você não olha em outra direção. Algum problema?
- Opa, opa... calma, moça! Vamos nos desarmar! - ele deu risada - Eu realmente estava olhando para você, mas é porque eu... Bom, não há um motivo exato pra se olhar pra alguém interessante, você me deixou em maus lençóis, Valkíria... - ambos riram - Eu percebi que você é estudante... É muito boa a sua faculdade... Que curso você faz lá?
Ele olhou na direção do chaveiro da mala de Valkíria. Ela, mecanicamente, também olhou:
- Ah, sim... É muito boa mesmo! eu faço História lá... Você não tem cara de que já trabalha... você também é estudante?
- Nossa, você é direta, hein? - Ele riu-se - Sim, eu sou estudante. Estudo na mesma faculdade que você, só que faço Engenharia Elétrica... E o que você faz perdida por essas bandas, tão longe do campus?
- Eu estou numa viagem de férias. Não é nada demais, sabe... Só quero espairecer um pouco... - o atendente chegou com o pedido e entregou-o a Valkíria, que deu uma boa mordida no cachorro quente.
- Hm.. Interessante... E você esteve chorando de emoção pela viagem? - perguntou o rapaz, com os olhos bem cravados nos olhos de Valkíria.
A menina levantou os olhos ainda um pouco inchados para Bruno e encarou-o. Achara muito estranho ele ter percebido que havia chorado, se bem que ela sempre deixava bem claro seus sentimentos pelo olhar e pelas ações e gestos. Mas achara estranho ele dar atenção a este fato. Ela limpou a boca e disse:
- Bem, eu acho que não quero falar sobre isso com um estranho...
- Mas se eu sou um estranho, por que não falar? Afinal, se eu sou um estranho, você nunca mais vai me encontrar, e, portanto, não haverá constrangimento: afinal, você nunca mais me encontrará. Logo... Pode me dizer. É claro, se você quiser.
Valkíria não entendera muito bem por que um estranho como Bruno se interessara nela, e muito menos por que desejava saber dos seus problemas. Mas, como ele havia dito, não via problema em se abrir para um desconhecido que se interessava, pelo menos aparentemente, por seus problemas.
Ela largou o cachorro quente e virou-se de lado para ficar de frente para Bruno.
- Bem, se você pretende mesmo ouvir, ser paciente, e tentar entender a minha realidade, aqui fica meu conselho, como conhecedora da minha própria vida: isso não será nada interessante, muito menos emocionante e sequer você é obrigado a ouvir. Assim que ficar entediado, me diga que eu paro.
- Uou, garota. Como você se subestima. Todos que prendem a minha atenção por mais de dois minutos são interessantes e normalmente não me decepcionam com suas histórias de vida. E mesmo que você esteja, com isso que disse, tentando me afastar, fazer com que eu me desinteresse e não mais fale com você, perde seu tempo. Agora mesmo é que me interessei pela senhorita.
Essa fala deixou Valkíria estonteada. Esse estranho realmente a interessara. Ela, então, explicou toda a sua situação. Explicou, ainda, o por que dela estar chorando - receio de ter tomado a decisão errada, de ter se enganado profundamente e não ter mais coragem para voltar pra casa depois disso.
- Entendo... Bom, Valkíria, o que eu posso te falar é que eu concordo com você. Quando não se está feliz com algo que acontece na sua vida, é preciso realmente procurar mudar isso. E errar e ter medo de errar é normal, é comum. Pelo menos é o que eu acho. Eu errei muito já. Já fiz várias escolhas erradas, como, por exemplo, acreditar numa ex-namorada que se dizia louca por mim, quando, na verdade, ela só estava louca pelo conforto que eu proporcionava a ela. E é por isso que eu, nessas férias, estou como você. Eu estou aqui pelo mesmo motivo que você: querendo espairecer, colocar as ideias no lugar, entender como eu vim parar nessa situação e como eu posso sair dela.
- Nossa, não imaginava que você também havia fugido de casa. Sério, você não parece um cara que faria isso... - ela riu-se.
- É o que todos acham. E é por isso que eu o fiz em grande estilo: mandei todos pra puta que os pariu e fugi com a minha moto! - eles riram-se.
O pedido de Bruno chegou e ele logo começou a comer. Era um lanche enorme, muito maior que o de Valkíria. Ela ficou espantada com o pedido de Bruno e ele percebera.
- Eu entendo o seu espanto e já explico: não aguento mais miojo e quis comer o maior lanche dessa lanchonete porque estou com muita, mas muuita fome. Se não tivesse muito dinheiro, como imagino que você esteja, eu também pediria um cachorro quente!
- Ah, me desculpe, eu não consigo disfarçar minhas reações às coisas... - ela riu-se.
Ambos gostaram muito de se conhecer e passaram desde a hora do almoço - hora em que Valkíria chegara ao posto de gasolina - até umas 16h.
Quando Valkíria ia se despedir de Bruno, ele a segurou pelo braço:
- Peraí... eu queria te perguntar uma coisa...
- Pode dizer, Bruno. - ela se sentou novamente.
- Já que nós dois estamos na mesma situação, que tal se nós dois fôssemos viajar juntos? Assim, eu penso que nós podemos nos divertir muito, como nos divertimos nessa tarde. O que você acha?
Valkíria ficou olhando nos olhos de Bruno. Ele fora sincero desde o momento em que se conheceram, e ela pensava que não seria de todo ruim ter companhia nessa viagem sem destino.
- Ah, não seria má ideia. Pelo menos nós teremos ajuda um do outro se alguém precisar. Aceito sim.
Bruno sorriu, limpou a boca, pagou seu lache e eles foram embora do posto de gasolina, rumando sul, e conversando divertidamente. O pôr-do-sol desse dia fora feliz para Valkíria. E também para Bruno.
~*~
Música:
"No money"
- Kings of Leon.

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