"Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim." - Clarice Lispector.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Jornada


Brigas e mais brigas. Era tudo o que ela presenciava e vivia. Brigas com seu pai, com sua mãe, com seus irmãos. Seu pai sempre lhe dizendo o que fazer, não na vida pessoal, mas na carreira que ela deveria seguir. Sua mãe sempre lhe dizendo como agir com garotos, o que fazer e o que não fazer, como ser submissa e ainda assim ter o controle da situação - o blá-blá-blá que ela já estava cheia. Seus irmãos, todos mais velhos, sempre sendo o exemplo da família: o mais velho dos três, um advogado de renome. O do meio, um universitário promissor, que mais a controlava do que qualquer outra coisa. Ela pensava até que isso era meio que... sem sentido, porque na universidade você tende a abrir a mente. Ela mesma era universitária - caloura, é verdade, mas tinha a mente mais aberta do que seu irmão que já cursava o terceiro ano de Jornalismo. Bom, vocês devem estar se perguntando quem diabos é essa menina e por que eu comecei a falar logo dos problemas dela. Certo, essa menina era uma menina que ouvia muita música, de todos os estilos, mas o seu preferido era o rock. Seja ele de qual variação for! Mas a sua variação preferida era, sem dúvidas, o indie rock. Ela tinha uma tatuagem de borboleta no ombro esquerdo, tinha o cabelo comprido, ruivo e cacheado; ela era alta, seus olhos castanhos, e tinha uma ânsia de liberdade enorme em seu coração. É o máximo que eu posso falar dela nesse momento. Conforme a história for se desenvolvendo, eu conto mais sobre ela. Detalhe: ela tinha um dos bens ganhados pelo pai dela que ela mais amava no mundo: uma moto. Uma Harley-Davidson FXDSE2 de 2008. Bem, é certo que não é uma moto barata, pois é importada. Mas foi um presente de 18 anos para ela, no ano passado. Seu pai havia salvado bastante dinheiro para dar a ela uma festa, mas ela quis comemorar tirando uma carta e ganhando uma moto.
Bem, agora já estão devidamente apresentados à protagonista, que chama-se Valkíria. Ela estava farta de toda essa pressão sobre sua cabeça. Queria que tudo se explodisse, que tudo e todos fossem à merda em grande estilo e de lá não voltassem antes que o sol engolisse a Terra inteira. Sim, ela era revoltada com todos. Por um simples motivo: mesmo ela vivendo numa cidade diferente que a dela, estudando, trabalhando todas a noites pra conseguir viver sem um tostão que viesse do seu pai, ela sempre recebia sermões e mais sermões de todos. Por quê? Por que ela era mente aberta, ela buscava entender as razões das coisas, e por isso ela ficou meio que cética... Meio que duvidosa de tudo. Entãos os dogmas da sua família não eram o sufuciente pra responder a todas as suas perguntas, e ela começou a questionar. Assim que começou, as brigas ficaram mais intensas. Eles já não aceitavam o seu modo de se vestir, de se portar com as situações e as pessoas. Só porque ela gostava mais de vestir-se com roupas casuais, mais escuras, ela era uma renegada? Uma excluída da sociedade? Só porque ela curtia usar um olho mais preto ela era esquisita? Estranha? Só porque ela é que sempre tomava as iniciativas quando se tratava de amor ela era atirada? Ela disse pra si mesma que não.
Certa tarde, enquanto lavava sua moto, uma tarde de férias, posto que estava em casa, seu pai chegou até ela e perguntou:

- Valkíria, quando você vai parar de andar desse jeito e ter essas ideias infundamentadas? Eu estou falando isso pro seu bem...!

Valkíria, que lavava a moto com seu mp3 ao ouvido, disse, tirando-o do ouvido:

- Que, pai? Não ouvi...

- Eu perguntei quando você vai parar com essa palhaçada e vai começar a se portar como a mulher que eu e sua mãe criamos pra que você fosse. Alguém que entendesse as coisas de nossa religião e as aceitasse, não que ficasse de lero-lero, questionando tudo, sendo revoltada, alegando que só procura entender as coisas... Oras, o que se há pra entender é o que nós te ensinamos!

Ela não acreditou nessa revolta repentina de seu pai. Ele sempre parecera tão calmo, tão compreensivo. Mas essa não era a primeira vez que ele vinha falar com ela sobre isso. Era somente a mais incisiva. E ela, claro, coração incitador e irritado que era o dela, não aceitou.

- Pai, só um momento... Eu não me porto como uma criança, se é o que você pensa que eu sou. E eu tenho minhas próprias crenças, me desculpe! Eu entendo, compreendo muito bem a religião de vocês, e respeito. Mas não me obrigue a ser o que eu não quero ser. Poxa, eu nunca insultei niguém sendo como eu sou. Muito pelo contrário. E vocês me ensinaram bem a ser uma mulher digna, se é o que você queria dizer com "mulher que vocês criaram pra que eu fosse". Poxa, pai! O que você pensa de mim?

- Eu não sei mais o que pensar... nessa faculdade sua aí muitos dos seus pensamentos vão mudar, é o ciclo natural de quem faz esse curso. Não sou eu quem digo, mas sim o que eu vejo na maioria dos lugares. E tem essa coisa de você gostar dos hippies aí... isso não me cheira a coisa boa...

Valkíria, nesse momento, se revoltou. "O quê? ele está pensando que eu sou hippie? Que eu uso drogas? É isso?". Ela largou a mangueira que segurava, desligou-a, enxugou as mãos num pano em que ela secaria a moto e, colocando uma das mãos na cintura, olhou bem no fundo dos olhos de seu pai e perguntou:

- O senhor está ensinuando que eu uso drogas? Que eu não faço nada na faculdade? O senhor sabe muito bem que eu trabalho!! E mais: pra que o senhor não tenha nenhum gasto a mais comigo.
- Eu não quis dizer isso, eu só me preocupo! - Ele disse, meio que sem jeito - Eu sou seu pai, preciso me preocupar, Valkíria.

- Isso pra mim é falta de confiança. Tô vazando.

Dizendo isso, entrou em casa rapidamente. Fez as suas malas que há pouquíssimos dias desarrumara, pois havia chegado de viagem. Na passagem, trombou com sua mãe, que disse:

- Ué, menina, tá louca? Sai passando que nem um jato por todo mundo, passando por cima, que isso! Além de maloqueira tá agressiva também?

Ela simplesmente parou e virou-se com ódio nos olhos:
- Pro inferno com o que você acha de mim! Eu não preciso nem de você nem do meu pai. Eu cuido do meu próprio nariz e estou farta de vocês dois se metendo dessa forma na minha vida! Aliás, eu estou cheia de você, do meu pai, do Guilherme e do Júlio. Todos querendo se meter na minha vida! Todos quer
endo se meter! Porra, eu ganho meu próprio dinheiro e não preciso de vocês pra cuidar da minha vida! Essas brigas por causa dessas banalidades imbecis acabam aqui. Eu estou indo embora de vez! Já não tenho quase nada nessa merda dessa casa mesmo, então não vou precisar voltar... - e seguiu subindo as escadas pro seu quarto.
- Menina, volte já aqui! Que falta de respeito é essa com seus pais?! Lembre-se que nós somos a sua família, quer você queira ou não!! - gritou a mãe, lá de baixo, por sua vez.

Valkíria voltou com uma mala às costas e disse, já saindo:

- Olha só, eu sei que eu posso estar me arrependendo ao fazer isso. Vocês sempre terão um lugar no meu coração. Eu amo vocês, porcaria! Mas, me desculpem, eu não posso mais continuar aqui. Eu vou fazer uma viagem nessas férias. Uma viagem pra qualquer lugar, não sei! E não importa pra vocês! Só fiquem sabendo que essa viagem é um jeito de dizer que eu sou como eu sou e nada vai mudar isso. Eu só vou mudar se assim achar necessário. E não, pai. Estar fazendo História não vai mudar minha cabeça assim tão drasticamente. Até porque as mudanças que aconteceram foram anteriores à faculdade. Tchau pra vocês.

Pegou seu capacete e foi saindo de casa. Quando subiu à moto, seu pai e sua mãe foram angustiados para fora de casa ver sua partida.

- Mas, minha filha, pra onde você vai? Como você vai comer? Onde você vai dormir? Por que você está tomando medidas tão drásticas assim? - o pai perguntava.

- Porque vocês tomam medidas mais drásticas do que essas. E eu estou farta de tudo isso. Não se preocupem, eu vou me virar. Sempre fui boa nisso.

Ela colocou o mp3 no ouvido, colocou o capacete e roncou o motor da moto. Tudo o que seus pais tiveram dela foi a visão dela arrancando de moto rumo ao pôr-do-sol.

~*~

Música:
"The End" - Kings of Leon.

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